16 de novembro de 2011

Coisas de nós

Ele me toca no lado secreto do ser. Está em águas límpidas de um lago profundo, escondido onde poucos um dia conseguiram banhar-se. Com cuidado e destreza ele escalou pelos abismos e entrâncias do meu ser formado por dissabores e vitórias, derrotas e levantares de cabeça. Suavemente ele cruzou fronteiras cujo translado eu mesmo havia tornado proibido, ele passou sem no entanto fazer caminhos, chegou com pisares silenciosos de gato. Surpreendeu-me.

Faço escrever-se isso aqui apenas por meu bel-prazer, sabendo que poucos conseguirão compreender o ocorrido. Não é coisa para muitos, não é coisa para tolos. São coisas de Tiago.

À noite enquanto ele dorme eu o visito. E mesmo que estejamos a mais de milhar de quilômetros um do outro não há nada que impeça que eu entremeie meus dedos por entre seus cabelos macios e acarinhe sua fronte. Ele franze a testa, ele esboça um sorriso, ele envolve meu braço. Sem me ver realmente, ele sabe que estou ao seu lado. Protegendo e pedindo guarda. Doando-me e me nutrindo de sua serenidade. Deitado, adormeço junto a ele. Nessa fusão somos uma só peça, de mesmo nome e nobreza.

Coisas de Tiago.

Eu o admiro, admiro profundamente. Há algo indefinível nos torpores que ele me faz experimentar, desejos tão puros com seu lado devidamente profano. Porque nada é santo, porque não somos prontos e acabados. E, na vontade dessa imperfeição, de complementar nossas qualidades com os defeitos um do outro, é que construiremos nosso paraíso particular. E essa edificação terá o formato apaixonado das músicas que ele me dedica e o sabor da saudades que dele sinto agora.

Majestoso, ele chega e se senta à minha frente, seus olhos amendoados fitando-me. Seus lábios, delineados de maneira que não se perde jamais a elegância o beijo, ainda que sejam beijos selvagens. Como são coisas de Tiago eu não procuro nele obviedades, eu não compreenderia se ele agisse como todos os outros. Na singularidade fomos lapidados, e se para alguns há algo de rebelde ou infantil em nosso modo de percorrer o caminho, é porque nos deixamos viver por inteiro. É porque eu quero senti-lo dos pés à cabeça, tê-lo todos os dias em mim, ser para ele a extensão de si mesmo.

Companheirismo, afeto, cumplicidade, excitação, imaginação, paixão, criatividade, amor. Completude. Risos, gozos, gargalhadas, suspiros, lábios mordiscados, pescoço marcado.

Coisas de Tiago.

Sed ad vitam aeternam

"Olho nos olhos, mas ali só vejo nulidade. Como se tivessem sido tragadas para dentro suas emoções. Presas, afogando-se em um redemoinho fora de alcance, ele engole a si próprio sem que possa – ele ou eu – fazer alguma coisa."



Despovoado a princípio, em um piscar de olhos logo habitado, em meu chão eu me vi. Flutuava sobre todos os outros e pela minha frente uma imensidão rarefeita se fazia. E não havia onde me sentar, e não havia porque me deitar. E meu amor estava longe, e meus inimigos já não mais me alcançavam.

Eu dei passadas longas embora não soubesse muito bem onde pisava, eu cuidei para não cair antes de perceber que fizesse o que quisesse dali não iria conseguir passar. No meu novo chão não havia poeira, translúcido piso feito de mística que até então eu ignorava. Deslizava contrariando o atrito de Newton.

Neste chão que não era de cerâmica ou granito pisavam muitas outras pessoas. Eu abaixava meu chapéu quando elas passavam, mas todas eram muito silenciosas. Quando tentei dizer algo percebi que também eu não conseguia enunciar som algum e no lugar, como um soluço repentino, cantei algum louvor ao senhor. Que eu não sabia bem quem era, mas pela nova consciência que haviam me implantado eu percebia que seria o prefeito do lugar.

Sentado como se no meu próprio credo de estar ali – pois não via em outro lugar sustentação parecida, eu parei para pensar como estava longe de casa. Sentia uma saudade benigna, como recordações de amigos que se reúnem para falar de tempos passados que, contudo, ainda podem ser revividos. E gostaria de dividir isso com alguém, embora as pessoas ali só falassem cantando e sempre para o dono do lugar. Cantavam como na missa do padre Joaquim, eu me lembrei depois.

Quando me quedei enfurecido com toda essa calmaria – pois eu não podia comer já que não sentia fome, não podia bradar já que me tinham acalmado a voz, pois eu não precisava me agasalhar onde a temperatura era sempre agradável –, cai de punhos cerrados no meu novo chão. Esmurrei aquela estrutura, provoquei um abalo sísmico, enlouqueci-me. Se Ismália atirou-se da torre, queria eu me jogar dali de cima para ao menos sentir um pouco de vida, que era o que menos tinham essas tantas pessoas estatizadas.

Mas naquele meu novo chão – onde não havia como temer já que não existia perigo e onde eu não conseguia, por mais que quisesse, causar desordem entre aqueles semelhantes, as estruturas foram feitas para não serem rompidas. E no broche da camisa branca que eu havia ganho quando cheguei estava escrito Sed ad vitam aeternam. Entendi que tinha ganho o grande presente por uma vida de bons modos.

E era no meu novo chão, onde não alcançavam as serpentes e cujas aparências só variavam da matiz azul para a junção de todas as demais cores, onde não havia vícios para me condicionar e ciência por se fazer, já que não havia problemas ou mistérios, que eu estava destinado a passar o resto de meus dias que não teriam resto.

9 de novembro de 2011

Era outra a situação agora

De repente, tudo cessou. Depois de todo o ruído, passado o torpor místico, os flashes que cegavam a visão sempre até então tão boa, depois daquela sensação (inverídica, então?) dos finíssimos ganchos rasgando a pele dos pés a cabeça, depois de tudo isso e com certeza coisas mais que não me lembro - dada a fluidez do momento - houve um estabelecimento de paz.

Tinha estado sonhando? Não me recobrei, de imediato, das últimas sequências temporais existentes na memória. Olhei em volta. Estava em uma sala familiar. A mesa de madeira escura, a cadeira de balanço, a cristaleira repleta de louça – raramente utilizada, o micro-ondas preto que destoava do cenário primário. Eu estava na casa de minha avó.

Entorpecido, sentei-me. A ordenação estabelecida de paz se mantinha, embora abrisse espaço para que uma confusão se instalasse: a regressão das cenas – absolutamente falha – me deixa no torpor da preocupação quando percebo que não me recobro do seguimento dado até aqui. Estive sonhando essas imagens tão reais agora há pouco?

Sentei-me. A cadeira suavemente embalou-se, sem que eu precisasse empregar um esforço físico exato para tal. Com a mão no bolso esquerdo, retirei de lá um maço de Marlboro comprado e ainda não aberto. Aparentemente eu o tinha comprado ainda em Rio Branco, mas dada a falta de nexo entre toda a memória imagética que se apresentava então, aquietei-me. Levado pelo movimento lento da cadeira, acendi o cigarro e o pus na boca.

Como que junto à fumaça, eu me elevava de maneira a estar, de certo modo, também dissolvido no ar, bastando querer para espalhar-me por toda a casa e, no instante que quisesse, ajuntar-me novamente em outro lugar. Deixei os pensamentos – loucuras, loucuras – prosseguirem, mas tentava me ater apenas ao ritmo das tragadas ao cigarro. Um formigamento na ponta dos dedos, da língua, da face, acometia-me desde quando dei-me por estar na sala. Flutuante estava eu.

Mais por hábito que real vontade, abri a garrafa branca em busca de café, mas estava vazia. Olhei, tomei-a nas mãos, fitei, refleti. Estava alva, alva e vazia. Exatamente como eu me sentia. Como se tivessem sido tirado de mim todo o peso sobressalente das injúrias da vida, das lembranças rancorosas, dos casos de amor mal vividos. Por um momento aquela pequena garrafa, um objeto, um objeto sintético e artificial, comungava do mesmo estado espiritual que eu.

Levando por um impulso, tão repentinamente como que o acordar recente, caminhei pela casa, abri uma porta, duas, três – não estava mais no mesmo ambiente – e cheguei a uma outro recinto. Ali a atmosfera era pesada, as janelas velhas de modelo barato eram cobertas por cortinas escuras e puídas. Pairava um odor malogrado, mas discreto. Talvez não o tivesse sentido senão por uma sensibilidade aguçadíssima – com a qual vi-me capacitado de ora pra agora –, que tangia ao espiritual.

Ali um amontoado de faces conhecidas jaziam algo que eu ainda não podia compreender. As feições tristonhas me deixavam apreensivo, embora, por esforço maior que fizesse, não conseguisse as fazer sairem do transe em que estavam e ouvirem uma palavra minha que fosse. Algo de errado acontecia. Eu sentia, sentia nitidamente. Despi-me da paz celestial e uma angústia pesada pegou-me pelos pés. Eu agora andava arrastado, e dificilmente me movia naquele bolo de gente. Meus olhos se voltaram para o que até então eu ignorava – estava no velório. Os céus se abriram e jogaram sobre mim, como a mão pesada do pai que vem para arrumar-lhe os juízos, a claridade da consciência.

Junto ao caixão sentava mamãe. Ela tinha o terço na mão e usava a blusa azul marinho de botões rosáceos, roupa costumeira de casa. Mamãe, que há tantos meses eu não via, e que – ainda não sabia o porquê – não atendia mais as minhas ligações. Em desespero eu a abracei, mas era como se não estivesse ali. Aos berros, com a boca espumante, agarrei-a pela camiseta, tentei ver seu rosto. Nada. Eu já sabia, embora negasse a todo instante – oh, Deus – que ela já não mais me via. Estávamos em prantos.

Meu tempo acabava. Vindos de fora daquele ambiente, os embaixadores me puxaram pela mão e secaram minha face imaterial. A situação era outra agora, falavam-me, e, sem ter onde ou em quem me apoiar, deixei-me ir com eles.

2 de novembro de 2011

Jogados

“Nós deixamos as coisas todas jogadas e voltamo-nos nossas costas. Nós nos deixamos todos jogados e saímos com as coisas nas costas.”


Calada cada palavra sua despejada no meu tronco amorenado de quem um dia foi todo amor. Que de dor eu suporto mais que poderia, e não desabo sob esta mortalha de carne agora pelo único motivo do orgulho sadio que ainda me move. Que se sabe, o único sadio que se move, ainda, dentro desse diálogo monologado.

Senti eu mais a dor do punhal cravado, ou fui quem puxou seu tapete em frente à multidão? Que se agora caíste com a boca nos degraus não ponha em mim a culpa do mau olhado, que, no caminhar desalinhado deste gostar errático, no máximo fora mal interessado. Porque da vida em palácios que me foi prometida houve o ponto em que nosso entendimento estivesse reduzido a um porão que abria para fora, tão somente. Não posso negar que te amei. Desejei intensamente cada sorriso colhido em manhãs de feriados e cafés na cama.



Nós deixamos as coisas todas jogadas e fechamos a porta. Cada um para si, como se o todo em comunhão fosse, antes de tudo, um delírio de poucos segundos. Momento ido, promessa quebrada. Eu queria chamar a toda essa legião ingratidão, mas isso essa não era, vez que, a minha maneira, também tenho certa parcela de culpa. Parcela advinda de uma compra feita a dois.

É como eu me sinto agora – mentira, ninguém sabe! Porque nenhum outro, afora alguns poucos judiados, poderiam suportar com meu vigor estas tantas chibatadas que meu lombo recebe advindas da fissão dos sonhos construídos com tanto carinho. Por que não nos avisaram de que tudo ia implodir-se depois?

Alguém sonhou em demasiado na montagem deste mosaico que agora desmorona. Não me venha com a estória “vamos medir por lágrimas ou pelos desafetos verbalizados” para saber quem saiu perdendo, quando está estampado em ambas a faces que fui eu. Culpado por acreditar em ideias que em mim foram implantadas, porque estava quieto no meu canto, assistindo minha janela, deitado no meu travesseiro.

Porque, antes de você chegar, essa casa era em pé. Que eu não posso agora implantar meu próprio coma particular e me enclausurar eu sei, e, assim, não é um castigo demasiado jocoso que eu tenha de deslocar o que antes dessa forma já o era, de maneira a me sentir no lar do meu peito novamente? Nosso movimento é identicamente oposto do mesmo eixo. Mas alguém está andando mais rápido.

Nós nos voltamos as costas e deixamos as coisas jogadas pelas portas todas. Porque por nenhuma das entradas possíveis seremos bem-vindos um para o outro novamente.