28 de julho de 2013

O Dragão de Fogo



O dragão se levanta, é noite ainda. O dragão se alimenta, se espelha, alicia a si e aos que o envolvem, o dragão se protege. O dragão se levanta, é noite ainda, e com ele, ao seu bater de asas, apontará no horizonte o primeiro levante da linha primária de raios de Sol a iluminarem a Terra neste dia. Estrondoso.

O dragão se levanta, é noite ainda, todos dormem. O orvalho amorteceu por quase doze horas as folhagens, os corações, a promessa de paraíso. Todos estão úmidos, mortalhas envoltas em trevas, húmus, folhagens, terra fria. E eis que se levanta o dragão. Bradam e estremecem nos menores refúgios de sombra todos os espíritos assombrados. Eis que se levanta, ele.

(Os olhares desencontrados, chorosos, e os homens que vagam olhando pelos retrovisores da vida. O cigarro deixado aceso, a fumaça espessa presa em olhos marejados, a viscosidade aveludada presa em membros entumecidos. Tudo o que era pra estar e acontecer mas, por um minuto, recuou-se. O dedo em riste, o trovão, a sentença, o brado, os olhares fulminantes. Mas, reparando bem, estávamos todos parados, congelados. Era a membrana, voluptuosa, singela, galante, do bem estar. Era esta parede, este invólucro de bons costumes, esta cadeira confortável que mantém-nos as pernas a balançar, envoltas em tiras de cetim. Quando menos esperar, a vida, esta que deixamos passar, pega-nos. E aí será tarde.)

O dragão se levanta, é noite ainda. Ele respira, exala, observa, assustado, o próprio acordar. Ele, que é o amanhecer e o florescer, e outros verbos, ainda, encarnados em si, sem que o saiba. O dragão se levanta, é noite ainda, e olha-se com olhares de quem se ama, mas é contido. De quem se admira, mas é tímido. Para si é um mistério maior que a vida, embora a vida seja, tanto quanto, tudo o que é contido em si. Sem que, entretanto, saibamos. Sem que ele desconfie. E eis que, sob o som dos aplausos de todos os seres, virando-se em toda sua imensidão, levanta-se, ele.

O dragão se levanta, e com ele acordam as esperanças e a ventania. Ele olha, penetrante. É um mago metido em vestimentas de sacerdote. E, ao rufar dos tambores mais distantes das entranhas do planeta, agita suas asas, e com este alarme chegam os raios de sol, o canto dos pássaros e a brisa matinal, que varre o mundo e tem o aroma do café. O dragão se levanta e com ele a manhã, que é ele próprio. Estrondoso.


9 de julho de 2013

Carta de Marília a Augusto


“Só me sinto querendo ir pra casa, deixar cair lágrimas no caminho e panos no chão. Os panos serão brancos mas irão se embarrear de tragédia e estupidez. Só me sinto querendo me desvencilhar de todas as mãos e ir pra casa.”




Local desconhecido, 09 de julho de 2013


Para Augusto,
Senhor da minha espera


Quando eu estava em paz, você apareceu a mim e nada representou além de um convite um sorriso tímido. Mas tola, eu, que caí envolta nesta timidez sua, e foi, você, deixando-me envolver, envolver por quem?, envolver pelo quê?, até estar quase completamente embaraçada por fios que eu mesmo teci e com os quais me sufoquei. Porque eu estava em paz e você me removeu dela, porque minhas noites eram solitárias e você as preencheu com expectativas, expectativas cujas ações comprei e me tornei sócia, sem saber, contudo, que se tratava de uma empresa fantasma. Porque eu estava só e minha solidão me é minha melhor companhia, mas você apareceu e, como sempre, acreditei que alguém pode ser melhor que estar só.

Você acontece, eu me solidifico. Você permanece, eu me esvaio, navego obscuramente sobre as águas sob forma de névoa. Você se reforma, eu sou amorfa. E eu gosto de ser amorfa, mas talvez seja o mal de quem é amorfo: tão logo encontra um recipiente para se depositar e tomar a forma do depositário, não hesita em fazê-lo. Foi o que me causou, você: me mostrou o frasco mas tapou-o antes que eu pudesse ali me ter, e virei sopro que ronda a esmo.

E se você me chamar de novo, direi: estou descabelada, mergulhada na lama, agora. Não posso ir.

Você não é ardiloso, contudo. Nem eu e nem você jamais nos oferecemos compromisso, embora, tacitamente, alguma coisa pudesse haver ali. Naqueles tapetes felpudos, enquanto mãos se entrelaçam, o pensamento viaja e eu encontrei algum tipo de sobriedade que me fez sentir bem. É assim com a companhia sua: faz-me bem, ela, logo, dela sinto falta. Automático e pragmático. Mas não consigo compreender-lhe e acabo o enxergando, hoje, como uma fechadura enferrujada, cuja chave já foi perdida há muito tempo. A bem da verdade, a chave está em algum lugar que até mesmo você sabe, mas não tem, você, vontade de se mover um passo que seja em direção a ela. E por isso permanece trancado, enferrujado, mesmo que tal ferrugem tenha aparência de sorrisos e meiguice, ah, essa meiguice sua que me tira o sono compulsivamente.

Estou pulguenta e sedenta agora. Tenho os braços arranhados e o rosto inchado. Não posso ir, ainda que me chamasse de novo.

Ah, se eu lhe pudesse ter enfiado a faca naquela ocasião, teria-a torcido e repuxado, bem a meu gosto. Teria preocupado-me comigo e meu prazer, e fazê-lo sentir cada puxada, cada fisgada. E ninguém teria o porquê de me cobrar depois. Mas sou boa demais para tal, e não consigo compreender-lhe os instintos masoquistas, tampouco conseguir-lhe-ia obrigar a algo. Como iria saber que era esse o desejo seu? Minha essência, esta, preservada tal como está agora, não foi o que lhe atraiu primeiramente? Não percebeu, você, que nada tenho de demoníaca? Deveria me sentir culpada por não ter?

Estou molhada agora. Estou suja e sedenta. Estou emputecida agora, meu rosto pende no escuro, pêndulo sou, e minhas risadas descabidas ecoam no universo. Meu sorriso ilumina todos os caminhos por onde você provavelmente anda agora. Sou um suvenir bem detalhado. Seu hiato me fez enlouquecer, caminho trançando as pernas agora e bebo leite no gargalo da caixinha. Não posso ir.

Setenta dias se passaram, esta tormenta permanece me consumindo como um oco. Mas oca não estou, pelo contrário, sou uma bucha velha e rasgada, absorvendo líquidos e sonhos à minha volta, esfregando chãos sujos à sua procura e deixando um rastro viscoso por onde passo. Não sei o que quero, e contigo não quero nada. Mas não deixo de ter suas fotos junto ao meu guarda-roupa e nem de perder alguns minutos da noite admirando-te o sorriso ingênuo. Este sorriso ingênuo de Augusto, perdido ou encontrado, mas Augusto somente. Sorrindo. Do outro lado, eu, sozinha. Eu, sozinha, sem Augusto.

E se você me convidasse agora, eu diria: estou vestida de ódio agora, não posso ir. Meus passos são pesados e magnetizarei tudo de você que se aproximar de mim. Estou em má hora, não sou boa companhia agora. Não posso ir.


Mas o jardim é florido e também tenho minhas deixas. Do meu alpendre, descalça, na ponta dos pés, tento me fixar na linha que o poente tece no horizonte. Passo um pente nos cabelos, uso vestido branco e rodo-o conforme o tempo balança. Sou simplesmente uma menina doce, com olhos em fúria. Da próxima vez que alguém me vier tirar da paz, é bom que tenha uma história de amor ou algo mais a oferecer em troca.