10 de março de 2014

Anos depois, aquela estranha visista


“Hoje não escrevo para mim, não escrevo por mim, não penso, não sinto, digito, transfiro, enojo-me, tenho repulsa, sou atraído, ensaio, caio, arrasto para eles.”


(Foi aceso o último cigarro do maço. O maço não será o último, mas o ato é simbolicamente valioso. Porque são onze e cinquenta e nove de um domingo qualquer, e até amanhã não haverá mais cigarro que supra. Mas isso, isso são notas apenas, e nem deveriam estar aqui. Eu tento não me por aqui, mas tudo isso são pedaços meus, refletidos nos movimentos histéricos feitos nas teclas. Isso tudo sou eu. Embora hoje eu não escreva para mim. Retiro-me.)


Anos depois, aquela estranha visita. Ao tempo passado de quando você foi feliz e não soube. Aos desejos suprimidos, reprimidos por uma necessidade intensa de carinho. Misericórdia, Senhor! Eu travo esse diálogo comigo, que não é um monólogo porque, eu sei, há alguém neste interior que grita, e pede pouco, pede um facho de luz, um lugar ao sol, por minutos, por momentos. Mas está sufocado, e nesse diálogo de raiva, aqui, bem aqui, sobram cinzas e uma garganta engasgada, que dói ao gemer.

Mas ninguém nunca foi feliz realmente. Porque a promessa do dia melhor é para amanhã. Quando poderemos repousar a cabeça confortavelmente no travesseiro, sem problemas e sem medo. E você consulta seu relógio, faltará muito para o próximo dia? Durmo hoje porque quero que o amanhã chegue logo, e minha rotina se faz entre uma ou outra espiada no calendário, está logo ali, o dia do sorriso verdadeiro, que se estenderá de orelha a orelha. O dia que vou me olhar no espelho e sentirei tesão pelo que vejo. O dia em que estiver adornado conforme meus planos, com as chaves certas no bolso. Até lá, sou escravo da ilusão, e gastamos os dias com promessas.

O tesão e a vida são um só, e seguem da mesma maneira. A vontade de possuir é a vontade de destruir, e de se autoconsumir. O que eu faço com o corpo do outro é destruição, mas gosto e gasto-o a meu bel prazer, até que jorre por toda a cama este esperma barato com odor de pecado. Depois do consumo, o momento passageiro de conforto, do ápice. A cama é arena de batalha, e o objetivo do jogo não é se satisfazer, nem satisfazer o outro. É a batalha do ego, e vence sempre a performance. E nesse vai e vem passam-se corpos, tempo, sentimentos debulhados e lençóis lavados, cheirando a amaciante.

Anos depois, aquela estranha visita. Por que tendo vivido tanto, parece que andamos tão pouco? Por que, tendo passado tantos dissabores, parece que construímos coisa tão miserável? Até então não se viveu plenamente? O mais doloroso é quando se anda próximo ao fim, quando já se vê o fim do horizonte, e carregamos a sensação de ingratidão conosco mesmos. Por que fizemos de tamanhos braços e pernas um legado tão inexistente? Por que não gritamos e vibramos de verdade? Por que engolimos tantas palavras boas e ruins, e por que perdemos tantas horas para rir da desgraça do próximo, enquanto dançávamos cavando nosso próprio túmulo?

Aquela estranha visita, anos depois. No nosso íntimo, um coração sangra, e é dor genuína. Infelizmente, mais genuína do que fomos em nossa existência toda. E ninguém nos cobrará além de nós mesmos. E pagaremos o preço, amargo, por cada ensaio, por cada simulação. Quem titubeia não vive, quem ensaia não vive, quem se senta no muro não vive. Assiste, no máximo, à vida que gostaria de ter, observando-a e invejando-a no outro.


A agonia está no quarto, escuro, e sozinho, com cheiro de gozo ainda quente na coberta e uma música mal sucedida no rádio da sala. Anos depois, aquela estranha visita ao que poderia ter sido tão maravilhoso. Mas não passou de uma maquete metida numa bolha.