venha como uma pancada de luzes, venha como hipnose ou hipnotismo, o que preferir. beba e sirva-se em minha casa, have a sit, comfortably. vagueie, adormeça e acorde, olhe sobre o muro, delicie-se. ligue o rádio ou o que quiser que faça música. jamais ouça sem minha permissão, contudo. não sou controlador, não seja controlador. venha com café, venha com odores que me agradem, não venha limpo, entretanto. não me traga limpeza, não venha com brancura, não seja antisséptico. cruze os braços quando a situação pedir, indigne-se, franza as sobrancelhas. me traga mais do que eu esperar. me surpreenda, mas não se demore mais do que o necessário. não faça de sua estadia uma tragédia, para você ou para mim. venha a calhar, sem que eu peça, mas também quando eu pedir. não se dissolva por mim, não viva minha vida, não me deixe perceber que irá abdicar de algo. não seja abdicador. arrase, destrua, marque seu caminho com rosas e fogo. seja coerente, abrasivo e arranque suspiros, meus ou de outros. não me importo. venha com olhos verdes ou castanhos, com pele retinta e unhas largas. mas sem elas também. venha com boca, com boca que beije, com boca que fale e com boca que sorria. não venha com boca que emburre. não emburre. entre quando quiser, mas não entre em meu espaço. tenha o seu, pegue seu assento, esteja confortável, mas não seja espaçoso. não seja meu inferno, não serei o seu. venha com mãos que puxem, venha para me tirar de mim, mas permita-se em meu universo também. não seja dramático, não seja exclusivo de si. e nem de mim. olhe sobre o muro e arranque do que vê algo melhor para hoje e diferente para amanhã. seja o mesmo e não vilipendie a rotina. mas não corteje a mesmice. venha com olhos verdes ou castanhos, com pele retinta e unhas largas, ou sem elas também. mas não se demore mais que o necessário.
há papéis espalhados, desordenados, como as ideias. povoa o ambiente a nuvem espessa e aromática das xícaras de café derramadas e sorvidas pela alma. no canto da sala eu me escondo em meio à fumaça. há muito o que fazer, há muito o que ler. há muito o que pensar.
13 de dezembro de 2018
10 de dezembro de 2018
No escuro
[N.A.] Nadando dentro de uma memória, lamenta-se o arrependido
Pela oportunidade perdida
Pelo descaso presumido
Pelo telefonema ignorado
Remoendo-se dentro de lamúrias que esperam por um fim, tenta em vão encontrar um conforto para sua própria irresponsabilidade. Mas a conta não fecha.
Ausente a luz e passos desconcertados. Tem bebido mais nos últimos meses, e culpa o momento político do país. Sabemos, sabemos que no íntimo não é bem assim. Tem dado as mãos aos vícios mais espúrios e arreganhado a boca em risadas amplas, ruidosas, que se esparramam pelo ambiente. Mas se houver um exame mais acurado por dentro da boca, veremos uma garganta que berra sem sorrisos.
O peito infla, esconde o soluço, e o ar quando expirado fala de coisas feitas e desfeitas, com voz que apresenta absoluto domínio de tudo. A situação está sob controle, e quando se aproximam as festas de fim de ano, o balanço dos atos, é preciso exalar os resultados. Tudo embrulhado em falácia – ainda que com papéis sedosos. Inexplicável como passaram-se noventa, cento e vinte, cento e cinquenta dias e a angústia permanece.
No escuro tateia à procura do que perdeu por desinteresse. Não mareja os olhos, por vergonha, mas ardem as memórias tentando recuperar o rubor sentido antes, o encanto, a espera, a presença. Duas cabeças duras, duríssimas, mas foi a sua quem deu de ombros sem explicações, e quis voltar atrás quando era tarde demais.
À oportunidade perdida, se vale a pena, deve-se prestar as condolências. Quando a conta não fecha, é preciso aceitar o prejuízo.
Fonte: Pixabay |
28 de fevereiro de 2018
O olho na palma da mão
“A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz. (HASSEL MENDES, F. R.)"
[N.A.] Hoje preciso escrever com as mãos em sangue, os pulmões em fúria, expelindo fumaças brancas, densas e condensadas. Hoje preciso botar panos de chão por debaixo das pálpebras, escorar o queixo como se houvesse escora – não se engane, não há – e olhar para além de mim.
O tempo é medida de contagem repugnante e admirável, tão completo e complexo em si que permite-se, assim, ser ambivalente, esconder, tragar, engolir, abraçar, escancarar, despejar tudo o que vemos, ouvimos, tocamos. Da forma como o vemos, ele se esvai pelas mãos e o ato de envelhecer – cada comemoração de aniversário, cada novo Ano Novo – vai se transformando, assim, em uma íntima batalha com as emoções mais trancafiadas, pois pela racionalidade não é possível travá-la, sobre como retê-lo.
Mas não há mãos, não há milhares de mãos, braços, colos, que possam refutar o que contabiliza a alegoria do tique-taque dos velhos relógios de parede. E sentamo-nos nas nossas janelas, nas reais e nas imaginárias, e debruçamo-nos em nossas sacadas, e contemplamos nossos porta-retratos, e vemos que a visão não vai mais tão longe. Em que ponto a contagem do indizível tornar-se-á uma contagem regressiva? Regressiva para o quê?
Nós nos matamos todos os dias, a cada vez que murchamos nossos corações por uma experiência que nos provoca um pequeno corte, um rasgo, uma passagem. A perda do contato, a quebra do vínculo, o momento exato em que as pontas dos dedos deixam de poder sentir o tato das pontas dos dedos de outrem – ah, é a hora em que violentamente nos jogamos no canto, costas na parede, e lentamente nos encolhemos até que a cabeça esteja protegida pelos joelhos, onde, escondidos, os olhos estão seguros para debulhar as lágrimas que a garganta, em nó, já anunciou.
Por que – e essa não é uma pergunta retórica – aparentemente nunca vivemos tudo até a exaustão? Sem extinguirmos a chama que permanece, estamos indo em direção a um paradoxo, pois, por um ponto de vista, acabado o fogo, morreu a vivacidade da relação, o ponto de combustão de ideias, risadas, lágrimas, compreensão mútua, desarranjos por e de amor. Não extinto o fogo, da mesma forma, irá pairar sobre nós, quando o distanciamento se der – e ele inadvertidamente ocorrerá –, o desejo doloroso e ardente de que tudo pudesse ser revivido, pois o seria melhor, com mais tempo, com mais atenção, com mais olhares perdidos na infinitude espiritual do outro. Teria sido diferente, ou essa é a ilusão que criamos para não confrontarmos o findar de uma era, uma época, um momento breve – que seja! – e intenso com o qual a vida nos presenteia?
Há estalos que não podemos compreender, e se amamos, deixamos que seja feita a vontade de quem lá está por pedir. Há cuspes que precisamos engolir, há expressões que precisaremos disfarçar, há momentos de fraqueza que serão mascarados com um semblante falso, há desconforto do que fazer com as mãos que pedirá um cigarro para passar menos percebido. Tudo o que é vivido o deve ser com a gravidade a que dedicamos o fazer religioso. Mais que fé, é preciso viver com devoção. Os fantasmas desesperadores das partidas não serão, nem por isso, sepultados. A cada nova alegria genuína, o pavor de sua ausência. E cada um seguirá sua história, com um laço desconexo que será para sempre selado, terminando um uma memória confortável, triste, divertida e orgânica.
Viver com devoção, eu repito porque preciso, trará unicamente uma certeza – da qual desconfiaremos a todo o tempo – de que fomos o que podíamos ser naquele momento. Mas nada é substituível, apenas complementar, no vale de memórias, afazeres, rotinas, amores, abraços, lágrimas, sorrisos e vitórias que constitui nossa história, sedimentada a cada novo passo, e que torna a cada um de nós essa finitude física que comporta o universo. A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz.
30 de janeiro de 2018
Expansão
[N.A.] Cada palavra parece agora uma pequena adaga que fere sem matar, apenas deixando um rastro leve, mas perceptível, de lágrimas vermelhas. Não é possível evitar o inevitável.
Eu apareci com meu coração aberto, e estendi mãos que, ainda calejadas, prontificavam-se a permitir e conceder o merecido afago. Eu entreguei as chaves e dei carta branca, e senti-me liberto e confortável, como dificilmente poderia me lembrar de já tê-lo estado. O que despontava de meus lábios era apenas brasa e carinhos, e avancei por caminhos desconhecidos e carregados de beleza tão indescritível quanto inédita.
Agora,
Agora,
Quando se lembrar de mim, lembre-se com afeto. Quando pensar em mim, pense com compaixão. Quando minha voz ressoar, que não seja fantasma, mas uma doce canção. Quando eu, inesperadamente, aparecer em uma foto, que não seja indesejável, mas a recordação de algo que pulsou vívido e alimentou a fome com um banquete.
Que o amor que foi intenso e concentrado agora espalhe-se sem barreiras, sem remorsos e sem cicatrizes. Que o que foi construído não desabe, mas possa servir de habitação para outras almas, e que cada decoração, cada retoque, não seja encoberto de cinza, mas contribua com um mosaico que ainda receberá novas cores e formas.
Quando se lembrar de mim, lembre-se com amor, e que o amor transforme tudo como uma enxurrada, como deve ser, como sempre foi. Pois nada será perdido, e sim transformado, nada será controlado, e sim permitido. Não há reservas, porque não há limites. A vida é urgente, a vida é contato, e o contato é amor.
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