27 de janeiro de 2011

Senhor Mandrave

O senhor Mandrave descansa em sua casa alta no alto da colina. Pés de plantas verdes estão abaixo de seus pés cobertos de meias brancas encardidas pelo tempo. Pontos de melancolia escorrem das pontas de seus dedos, e tudo o mais é cinza já há algum tempo. As caóticas nuvens sopram pelos ares vindos do norte enquanto uma cortina escura eclipsa o restante dos raios famigerados daquele sol decadente. Decadente há tempos.

A cadeira do senhor Mandrave balança lentamente, tanto quanto passam as horas em um relógio antigo, com um Cuco velho a marcar a passagem dos sessenta minutos. Caduco, às vezes se lembra de todas, às vezes deixa esticar algumas. E daí que o dia no alto da colina tem dia que dura vinte horas, tem dia que dura quatorze. A cadeira acompanha, de costume velho. Corroídas suas tiras mais antigas, algumas substituições da madeira caídas, expulsas pelas tábuas lascadas originais. Coisa de madeira, coisa de cadeira...

Do alto de sua colina o senhor Mandrave ouve a música tema do Morro dos Ventos Uivantes, embora em seu palacete discreto não haja ventos uivantes, no máximo cachorros. Mas estão todos velhos, velhos como o tempo. As janelas rangem, ao menos. Em seu gramofone ele toca bailes inteiros de quando ainda vivia lá embaixo, à época dos jazzes, dos boleros, dos tangos. A corda que dá ânimo ao giro do disco é idosa e a música passa um pouco mais devagar, não muito diferente do modo que as memórias são processadas, é tudo especialmente amigado para funcionar então tão bem como quando fora concebido. As coisas envelhecem juntas.

As páginas amareladas dos livros do senhor Mandrave ainda contam estórias. Contam apenas, e mantém-se fiéis aos fatos conforme lhe foram impressos. Estão por demais surdas para saberem alguma alteração no conto. Contam como lhe contaram. Não se impacientam com a vagareza dos olhos que as observam, estão senhoras, querem ser notadas, querem ser cuidadosamente manuseadas. Essas vaidades que aparecem com o tempo, que nem todos assumem, mas as tem a todo o tempo lhes segurando as vontades. As vontades não são maiores que as permissões da vaidade.

O senhor Mandrave assou pães de queijo para o lanche. Ele se levanta de sua cadeira, coa o café no filtro de pano outrora jovem, mas que hoje é moreno como os escravos oitocentistas. Com paciência, o velho Cuco marca as cinco horas. A mesa está forrada com um forro de mesa axadrezado, com quadrados vermelhos, azuis e verdes. Alguns quadrados já mudaram de lugar, outros sofreram queimaduras com leites, cafés e chás quentes e estão meio descorados. A xícara do senhor da casa é branca como o leite, com a borda interna adornada por um anel fino de fino ouro. Ela poderia nos narrar boa parte da vida dele, poderia nos contar ainda o que lhe revelou o bule esmaltado cheio de pintinhas brancas, velho de casa. E enquanto isso, as caóticas nuvens soprariam pelos ares do norte o bucólico aroma do pão de queijo com café para os ares do sul.

As coisas envelhecem juntas.


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