“Hoje não escrevo
para mim, não escrevo por mim, não penso, não sinto, digito,
transfiro, enojo-me, tenho repulsa, sou atraído, ensaio, caio,
arrasto para eles.”
(Foi aceso o último
cigarro do maço. O maço não será o último, mas o ato é
simbolicamente valioso. Porque são onze e cinquenta e nove de um
domingo qualquer, e até amanhã não haverá mais cigarro que supra.
Mas isso, isso são notas apenas, e nem deveriam estar aqui. Eu tento
não me por aqui, mas tudo isso são pedaços meus, refletidos nos
movimentos histéricos feitos nas teclas. Isso tudo sou eu. Embora
hoje eu não escreva para mim. Retiro-me.)
Anos depois, aquela
estranha visita. Ao tempo passado de quando você foi feliz e não
soube. Aos desejos suprimidos, reprimidos por uma necessidade intensa
de carinho. Misericórdia, Senhor! Eu travo esse diálogo comigo, que
não é um monólogo porque, eu sei, há alguém neste interior que
grita, e pede pouco, pede um facho de luz, um lugar ao sol, por
minutos, por momentos. Mas está sufocado, e nesse diálogo de raiva,
aqui, bem aqui, sobram cinzas e uma garganta engasgada, que dói ao
gemer.
Mas ninguém nunca foi
feliz realmente. Porque a promessa do dia melhor é para amanhã.
Quando poderemos repousar a cabeça confortavelmente no travesseiro,
sem problemas e sem medo. E você consulta seu relógio, faltará
muito para o próximo dia? Durmo hoje porque quero que o amanhã
chegue logo, e minha rotina se faz entre uma ou outra espiada no
calendário, está logo ali, o dia do sorriso verdadeiro, que se
estenderá de orelha a orelha. O dia que vou me olhar no espelho e
sentirei tesão pelo que vejo. O dia em que estiver adornado conforme
meus planos, com as chaves certas no bolso. Até lá, sou escravo da
ilusão, e gastamos os dias com promessas.
O tesão e a vida são
um só, e seguem da mesma maneira. A vontade de possuir é a vontade
de destruir, e de se autoconsumir. O que eu faço com o corpo do
outro é destruição, mas gosto e gasto-o a meu bel prazer, até que
jorre por toda a cama este esperma barato com odor de pecado. Depois
do consumo, o momento passageiro de conforto, do ápice. A cama é
arena de batalha, e o objetivo do jogo não é se satisfazer, nem
satisfazer o outro. É a batalha do ego, e vence sempre a
performance. E nesse vai e vem passam-se corpos, tempo, sentimentos
debulhados e lençóis lavados, cheirando a amaciante.
Anos depois, aquela
estranha visita. Por que tendo vivido tanto, parece que andamos tão
pouco? Por que, tendo passado tantos dissabores, parece que
construímos coisa tão miserável? Até então não se viveu
plenamente? O mais doloroso é quando se anda próximo ao fim, quando
já se vê o fim do horizonte, e carregamos a sensação de
ingratidão conosco mesmos. Por que fizemos de tamanhos braços e
pernas um legado tão inexistente? Por que não gritamos e vibramos
de verdade? Por que engolimos tantas palavras boas e ruins, e por que
perdemos tantas horas para rir da desgraça do próximo, enquanto
dançávamos cavando nosso próprio túmulo?
Aquela estranha visita,
anos depois. No nosso íntimo, um coração sangra, e é dor genuína.
Infelizmente, mais genuína do que fomos em nossa existência toda. E
ninguém nos cobrará além de nós mesmos. E pagaremos o preço,
amargo, por cada ensaio, por cada simulação. Quem titubeia não
vive, quem ensaia não vive, quem se senta no muro não vive.
Assiste, no máximo, à vida que gostaria de ter, observando-a e
invejando-a no outro.
A agonia está no
quarto, escuro, e sozinho, com cheiro de gozo ainda quente na coberta
e uma música mal sucedida no rádio da sala. Anos depois, aquela
estranha visita ao que poderia ter sido tão maravilhoso. Mas não
passou de uma maquete metida numa bolha.
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