7 de junho de 2022

Um dia você vai me agradecer por tudo


You don't see me now,
I don't see you back.
One day I'll be fine with that.

[Sharon Van Etten]



Dez anos se passaram e aqui estamos nós, sentados e silentes, fitando nosso futuro diante das palmas das nossas mãos, espalhadas à espera. Espalmadas como quem pede, sem saber o que, de quem, irá receber. Alguém. Tão longes, tão distantes, tão perdidos. As palavras que acho que me faltam, eu as encontro em outras sensações. Tantas substituições a troco de nada, tanta perda de tempo. Tempo que passa, implacável, abalando fundações e causando rachaduras irreparáveis nos sentimentos, que minguam. As esperanças minguam.


Eu uma vez te olhei pelo espelho, e hoje só vejo o espectro do eu que procurava se encontrar em você. Se encontrar com você. Participando de você. Se encontrar em um nós. Eu uma vez te olhei pelo espelho e desejei que o você que eu via pelo reflexo se eternizasse ali. Sem envelhecer um dia a mais. Sem envelhecermos um dia a mais.


Dez anos se passaram, e a simplicidade de fazer planos tão singelos não existirá nunca mais. Se desintegrou em meio a esse tempo que me rodopiou sem que eu percebesse. Sem que eu percebesse, ao menos, da forma tão dolorosa que é. Metáforas e palavras bonitas, nada conseguirá descrever como é estar tão dentro do centro a ponto de não conseguir sentir o movimento que a vida faz, em coletivos de dias, ou de meses, ou de anos. Ridiculamente domesticados em folhinhas de calendários. E nesse movimento, que só conseguimos contar por ciclos de repetições idênticas, acontecimentos que nada têm de parecidos passam por nós, ultrapassam-nos, perpassam-nos, nos fazem de bobos.


(Eu me cansei de explicar, como já te disse, aos que ainda não perceberam como é se sentir passado para trás pelos dias. E para poder se sentir assim, é preciso ser também privilegiado. Privilegiado para poder ter consciência do desprivilégio que é perceber a vida de uma posição confortável, em que se tem outras preocupações além de desesperadamente sobreviver. Seria melhor não ter nem esse tempo e nem essa memória?)


Eu uma vez te olhei dormindo, outra vez sorrindo, e desejei que sua aparência, a que eu formava em minha mente por meio dos meus olhos, do meu olfato, das pontas dos meus dedos, jamais mudasse. E desejei que seu jeito despojado e ardente, que em mim causava um torpor, uma paixão que beirava o insuportável, jamais se desfizesse em mim. Eu desejei que esse encontro – entre o que você dizia e se fazia ser e o que eu interpretava do que era você em sua expressão e realização plenas – jamais, em hipótese alguma, terminasse.


Eu desejei a plenitude.


As esperanças minguam. No lugar, vão-se lentamente sendo substituídas por uma resignação mórbida, de quem se transforma no cidadão comum que cantava Belchior. O da vida de por favor/ obrigado. O da morte fútil, indiferente. Esse é ao mesmo tempo o maior terror e a maior condenação que pode ter alguém que, como nós, já desejou a grandeza, a grandeza exponencial, que se expande mesmo sem nada, dentro de cada um. Que explode entusiasmo. Que implode o mais selvagem de cada um, em direção ao outro.


Um dia vou acordar e descobrir que você se foi. A morte será simbólica ou atestada, medicamente comprovada. Qualquer uma delas será tão dolorosa quanto possível. E será enterrado não um corpo, mas um novelo não quantificável de fios com nós feitos e desfeitos, puídos ou preservados, a depender do segmento. Da época de tecelagem de cada trecho. Um carretel de tudo o que era para ser e foi malfeito, foi incompleto - não foi, enfim. E a imagem, congelada, que eu quis preservar, terá perdido, agora para o sempre, sua ancoragem em algo tangível.


Esse desejo é cruel não por ser egoísta, mas por ser irrealizável. Dez anos se passaram, e o que temos nas mãos é tão pouco a ponto de não termos mais sequer as mãos um do outro, em afagos sinceros que, tão rapidamente, viravam em volúpia. Descarada e descansada volúpia. E tudo isso não é sobre você, é sobre você e todos os que vieram e se foram depois, quando tentei que o sentido que havia quando era você se recompusesse. Mas você não fazia mais sentido, e os outros não tinham sentido.





Um dia, ainda, eu vou te agradecer por tudo.




[Imagem: Pixabay]

14 de janeiro de 2022

interlúdio 2022

 


não preciso mais dos seus conselhos
não acho que me reconheço neles e nem nos de ninguém
aparentemente não me reconhecem também

as coisas que fiz

os lugares que vi

não cabem nos julgamentos seus e de ninguém

 

não preciso mais do seu sorriso

enaltecendo quando fiz o que esperavam

seguindo um script para não enfurecer ninguém

 

não preciso mais das longas conversas de desabafo

que me distraíam enquanto o fio do telefone se enroscava

para, num outro dia, atar minhas mãos a seus caprichos

 

de repente, não preciso mais

estou bem aqui, vendo só até onde a definição permite

conversando com meus botões, dedilhando na mesa de madeira

refletindo por dentro da xícara, por dentro de mim

 

os enlaces que fiz

os lugares que vi

as coisas que senti

os vexames que eu dei

as pessoas que amei

não cabem no seu julgamento, no seu e no de ninguém






[Crédito da imagem: Pixabay]

5 de janeiro de 2022

Unspeakable




Coração, órgão do meio, que [dizem] fala pelo cérebro, o verdadeiro responsável
Coração, órgão do meio, que palpita mais forte ou quase desaparece do tato, conforme o dia


Fala palavras não entendíveis
Diz, com o ritmo, em códigos
Sentenças impronunciáveis
Verdades condenatórias


Coração, órgão do meio do peito
Peito que aconchega e recebe
Peito que respira, inspira e expele
Coração, órgão tão namorado
[E maltratado pelos hábitos alimentares ocidentais]


Fala por sua própria língua
Palpitações que, por sorte, só eu entenderei
Em códigos que, depois, a memória sofrerá para decifrar
Verdades condenatórias, afirmações tão necessárias


Do meio do peito, que aconchega e recebe
Que se sensibiliza ao tato
Que esfria com as correntes de tormentas
E guarda com zelo quem mais merece seus cuidados


Sentenças impronunciáveis, verdades condenatórias
Afirmações tão necessárias, que só eu entenderei






(Imagem: Pixabay)

23 de julho de 2021

Vampiro


[N.A.: Em algum momento da existência, na vida ou além dela, vampiros somos todos]



O equilíbrio entre não sentir muito e permanecer sentindo é um ritual de todos os dias. A delicadeza de absorver e receber os sorrisos percebidos em volta, de se envolver na multidão de pouca ou muita gente sem se deixar de lembrar que no fim da noite é mais um dia sem retorno, com a cabeça afundada em travesseiros e o tato vazio.

O equilíbrio entre sentir muito e não afogar tudo em volta é uma reza de joelhos nos chãos. Todos os dias. A sensibilidade de se levantar depois do tombo, rindo entoando a graça sem graça de um pequeno vexame, enquanto por dentro os ossos trincados por outros tombos rangem seus próprios dentes.


É na tentativa que reside o cotidiano. De pegar sua mão e olhar com uma distância segura, evitando que os olhos traguem e sorvam de uma vez a alma que alcançam quando as pupilas estão alinhadas. Se inevitável, melhor que seja pouco a pouco.


A quebra do equilíbrio provoca rachadura da unha do dedão ao maxilar, e nessa quebra tudo vai ao chão, mesmo que o espectro continue fazendo sua performance, holograma inteiro e intacto de mãos abertas e dispostas. O martírio de se mutilar pelo fio perdido da meada muitas vezes vai chicotear mais fundo que os estragos que poderia fazer o solto fio, debatendo-se em faíscas e sem controle.

No fim da noite é apenas mais um dia sem retorno. O tato vazio é real e sobrepõe-se a quaisquer estímulos nervosos que podem ou não haver. A mente brilhante permanece acesa a quase todo o tempo, irradiando uma luz nauseante. Os olhos abertos mesmo quando nada se pode enxergar, fitando e remoendo, planejando e riscando, esperando que se cumpra o de sempre, mesmo sem ninguém a pedi-lo.


É em quando falha a tentativa que reside minha miséria. De buscar seu rosto no cotidiano e não mais compreender como era. Fagocitado pela euforia que não pude conter. De ver se esvair, como areia na ampulheta sem fundo, os sorrisos que absorvi e incorporei sem poder impedir. E agora sem expressão o seu corpo, mesmo que ainda ao alcance do meu enlace, no ato que encerra minha própria tragédia.


O equilíbrio é uma utopia de todos os dias.





























(Fonte da imagem: Pixabay)

23 de janeiro de 2019

Felipe


[N.A.] Quando acendo uma luz, são milhares de pontos que brilham sobre, sob e ao meu redor. Sou um estranho nessa multidão, és um estranho nessa multidão.




Dando uma volta pelo quarteirão, sacolas nos braços, calças rasgadas, é um dia normal. Somos formigas desordenadas nessa imensidão, dando de ombros para outras. Há similares e certamente há iguais, mas estão desconhecidos de ti. Há os que buscam o que você busca, há os que podem somar contigo uma vida inteira, há os que lhe ligariam no outro dia. Mas estão desconhecidos de ti.

Quando em sua melancolia acende o beque, sobe a fumaça que completa o apartamento de pisos gastos. O gato que tudo vê, na janela, dimensiona e redimensiona a incompletude que o espaço vago e habitado, habitado por milhões de faces incógnitas, representa pra ti, e pra ele. Do ponto de vista de um felino, há tantas dimensões para se importar que todo esse romance, carregado de drama fecundo, não passa de distração. Mas você não é o seu gato.

A rotina que te consome é, do outro lado da moeda, a atração para aqueles que não possuem rotina. Para aqueles que desejam nadar no mar de braços soltos e diversos, que almejam estar ali, no centro do olho, mesmo sem poderem ver. A rotina te consome e, como brasa, você se desmancha por entre os dias, e já não sabe precisar mais o que diferenciou o ontem de semana passada e o que haverá de novo no próximo mês. Consumido e adequado, profundamente entorpecido, você é habitante de um coração tão grande, tão grande, que se deforma em massa dura e asfáltica tão necessária quanto inebriante. E, em alguns dias, o movimento de ir e vir é feito sem esforço, pelos pulsares da megalópole.

A história de uma paixão, uma paixão de vida, não é contada. Escondida, deixa ser percebida apenas por entre frestas, mas nem mesmo assim é fácil. É preciso uma faca na fenda, senão um pé-de-cabra, para que um pouco de luz entre e permita ver o que há por dentro. Mas o movimento é desconfortável, rechaçado pelo seu próprio dono. Por que há vergonha de seu trajeto? Será porque ele não leva ao destino desejado? Será porque, na experimentação, perdeu-se o prumo acerca do que é o desejado de fato? Será pelo dinheiro, será pela falta de uma prática condecorada pela sociedade vil? O que se desfaz no não contar, o que se perde nas lembranças acatacumbadas que se vão sendo sovadas com a indiferença alimentada pelo cotidiano?

É noite de Ano Novo, há fogos na grande avenida, e foguetório barato nos quintais vizinhos. Enquanto metade, ou talvez mais, aplaude o que chega, simplesmente por chegar, sem que haja muito ao que se agarrar realmente, a outra trabalha para manter bombeando o coração que jamais dorme. Mas você não faz parte de um grupo, nem de outro. Enfurnado em lençóis, dorme na tentativa de compreender o que tudo isso significa – chegar a mais um ano vendo a vida, gotejando, passar sem um feito histórico. Histórico para si. Sobre ti pairam fantasmas de várias faces. Paira o corpo indefinível do tempo, que é um carrasco puxando correntes atadas a todos, invariável ao sofrimento e à miséria dos poucos que percebem seu movimento. Como acordou dessa noite, como enfrentou o primeiro dia de um novo ano que não lhe trouxe novidade? Como saberei?

Os cabelos amarrados, equilibrando uma face pesarosa e séria, dando beleza a um conjunto singular, passeiam pelos trens metropolitanos para mais um dia de mais um mês de mais um ano. Há uma beleza que inflama poeticamente essa trajetória sem romance, esse desespero contido pelas amarras da rotina trançada, e da qual se busca escapar. Há milhares de faces diferentes, com mentes similares, há milhões de faces diferentes, com corações iguais, mas estão desconhecidas de ti. E as artérias que perpassam esse coração imenso são largas demais para que se percebam. No mar de braços há tantos nadantes que se tornam um só, uniformizado, atomizado, incapaz de ver a própria face. São milhões de faces que passeiam todos os dias sem turismo, atrás de suas próprias histórias a construir, mesmo sem saber que assim já as são, feitas dia após dia. Similares ou até iguais, desconhecidos e sem possibilidade de virem à tona. A solidão espreita mesmo sob a luz forte de um meio dia, e afronta até o destemido durante o estrondoso breu da madrugada.

Há os que buscam o que você busca, há os que podem somar contigo uma vida inteira, há os que lhe ligariam no outro dia, há os que buscam você, sem saber. Mas estão desconectados de ti.






13 de dezembro de 2018

A criatura como a deseja o criador



venha como uma pancada de luzes, venha como hipnose ou hipnotismo, o que preferir. beba e sirva-se em minha casa, have a sit, comfortably. vagueie, adormeça e acorde, olhe sobre o muro, delicie-se. ligue o rádio ou o que quiser que faça música. jamais ouça sem minha permissão, contudo. não sou controlador, não seja controlador. venha com café, venha com odores que me agradem, não venha limpo, entretanto. não me traga limpeza, não venha com brancura, não seja antisséptico. cruze os braços quando a situação pedir, indigne-se, franza as sobrancelhas. me traga mais do que eu esperar. me surpreenda, mas não se demore mais do que o necessário. não faça de sua estadia uma tragédia, para você ou para mim. venha a calhar, sem que eu peça, mas também quando eu pedir. não se dissolva por mim, não viva minha vida, não me deixe perceber que irá abdicar de algo. não seja abdicador. arrase, destrua, marque seu caminho com rosas e fogo. seja coerente, abrasivo e arranque suspiros, meus ou de outros. não me importo. venha com olhos verdes ou castanhos, com pele retinta e unhas largas. mas sem elas também. venha com boca, com boca que beije, com boca que fale e com boca que sorria. não venha com boca que emburre. não emburre. entre quando quiser, mas não entre em meu espaço. tenha o seu, pegue seu assento, esteja confortável, mas não seja espaçoso. não seja meu inferno, não serei o seu. venha com mãos que puxem, venha para me tirar de mim, mas permita-se em meu universo também. não seja dramático, não seja exclusivo de si. e nem de mim. olhe sobre o muro e arranque do que vê algo melhor para hoje e diferente para amanhã. seja o mesmo e não vilipendie a rotina. mas não corteje a mesmice. venha com olhos verdes ou castanhos, com pele retinta e unhas largas, ou sem elas também. mas não se demore mais que o necessário.







10 de dezembro de 2018

No escuro




[N.A.] Nadando dentro de uma memória, lamenta-se o arrependido
Pela oportunidade perdida
Pelo descaso presumido
Pelo telefonema ignorado

Remoendo-se dentro de lamúrias que esperam por um fim, tenta em vão encontrar um conforto para sua própria irresponsabilidade. Mas a conta não fecha.




Ausente a luz e passos desconcertados. Tem bebido mais nos últimos meses, e culpa o momento político do país. Sabemos, sabemos que no íntimo não é bem assim. Tem dado as mãos aos vícios mais espúrios e arreganhado a boca em risadas amplas, ruidosas, que se esparramam pelo ambiente. Mas se houver um exame mais acurado por dentro da boca, veremos uma garganta que berra sem sorrisos.

O peito infla, esconde o soluço, e o ar quando expirado fala de coisas feitas e desfeitas, com voz que apresenta absoluto domínio de tudo. A situação está sob controle, e quando se aproximam as festas de fim de ano, o balanço dos atos, é preciso exalar os resultados. Tudo embrulhado em falácia – ainda que com papéis sedosos. Inexplicável como passaram-se noventa, cento e vinte, cento e cinquenta dias e a angústia permanece.

No escuro tateia à procura do que perdeu por desinteresse. Não mareja os olhos, por vergonha, mas ardem as memórias tentando recuperar o rubor sentido antes, o encanto, a espera, a presença. Duas cabeças duras, duríssimas, mas foi a sua quem deu de ombros sem explicações, e quis voltar atrás quando era tarde demais.

À oportunidade perdida, se vale a pena, deve-se prestar as condolências. Quando a conta não fecha, é preciso aceitar o prejuízo.



Fonte: Pixabay

28 de fevereiro de 2018

O olho na palma da mão

“A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz. (HASSEL MENDES, F. R.)"


[N.A.] Hoje preciso escrever com as mãos em sangue, os pulmões em fúria, expelindo fumaças brancas, densas e condensadas. Hoje preciso botar panos de chão por debaixo das pálpebras, escorar o queixo como se houvesse escora – não se engane, não há – e olhar para além de mim.




O tempo é medida de contagem repugnante e admirável, tão completo e complexo em si que permite-se, assim, ser ambivalente, esconder, tragar, engolir, abraçar, escancarar, despejar tudo o que vemos, ouvimos, tocamos. Da forma como o vemos, ele se esvai pelas mãos e o ato de envelhecer – cada comemoração de aniversário, cada novo Ano Novo – vai se transformando, assim, em uma íntima batalha com as emoções mais trancafiadas, pois pela racionalidade não é possível travá-la, sobre como retê-lo.

Mas não há mãos, não há milhares de mãos, braços, colos, que possam refutar o que contabiliza a alegoria do tique-taque dos velhos relógios de parede. E sentamo-nos nas nossas janelas, nas reais e nas imaginárias, e debruçamo-nos em nossas sacadas, e contemplamos nossos porta-retratos, e vemos que a visão não vai mais tão longe. Em que ponto a contagem do indizível tornar-se-á uma contagem regressiva? Regressiva para o quê?

Nós nos matamos todos os dias, a cada vez que murchamos nossos corações por uma experiência que nos provoca um pequeno corte, um rasgo, uma passagem. A perda do contato, a quebra do vínculo, o momento exato em que as pontas dos dedos deixam de poder sentir o tato das pontas dos dedos de outrem – ah, é a hora em que violentamente nos jogamos no canto, costas na parede, e lentamente nos encolhemos até que a cabeça esteja protegida pelos joelhos, onde, escondidos, os olhos estão seguros para debulhar as lágrimas que a garganta, em nó, já anunciou.

Por que – e essa não é uma pergunta retórica – aparentemente nunca vivemos tudo até a exaustão? Sem extinguirmos a chama que permanece, estamos indo em direção a um paradoxo, pois, por um ponto de vista, acabado o fogo, morreu a vivacidade da relação, o ponto de combustão de ideias, risadas, lágrimas, compreensão mútua, desarranjos por e de amor. Não extinto o fogo, da mesma forma, irá pairar sobre nós, quando o distanciamento se der – e ele inadvertidamente ocorrerá –, o desejo doloroso e ardente de que tudo pudesse ser revivido, pois o seria melhor, com mais tempo, com mais atenção, com mais olhares perdidos na infinitude espiritual do outro. Teria sido diferente, ou essa é a ilusão que criamos para não confrontarmos o findar de uma era, uma época, um momento breve – que seja! – e intenso com o qual a vida nos presenteia?

Há estalos que não podemos compreender, e se amamos, deixamos que seja feita a vontade de quem lá está por pedir. Há cuspes que precisamos engolir, há expressões que precisaremos disfarçar, há momentos de fraqueza que serão mascarados com um semblante falso, há desconforto do que fazer com as mãos que pedirá um cigarro para passar menos percebido. Tudo o que é vivido o deve ser com a gravidade a que dedicamos o fazer religioso. Mais que fé, é preciso viver com devoção. Os fantasmas desesperadores das partidas não serão, nem por isso, sepultados. A cada nova alegria genuína, o pavor de sua ausência. E cada um seguirá sua história, com um laço desconexo que será para sempre selado, terminando um uma memória confortável, triste, divertida e orgânica.

Viver com devoção, eu repito porque preciso, trará unicamente uma certeza – da qual desconfiaremos a todo o tempo – de que fomos o que podíamos ser naquele momento. Mas nada é substituível, apenas complementar, no vale de memórias, afazeres, rotinas, amores, abraços, lágrimas, sorrisos e vitórias que constitui nossa história, sedimentada a cada novo passo, e que torna a cada um de nós essa finitude física que comporta o universo. A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz.




30 de janeiro de 2018

Expansão

[N.A.] Cada palavra parece agora uma pequena adaga que fere sem matar, apenas deixando um rastro leve, mas perceptível, de lágrimas vermelhas. Não é possível evitar o inevitável.




Eu apareci com meu coração aberto, e estendi mãos que, ainda calejadas, prontificavam-se a permitir e conceder o merecido afago. Eu entreguei as chaves e dei carta branca, e senti-me liberto e confortável, como dificilmente poderia me lembrar de já tê-lo estado. O que despontava de meus lábios era apenas brasa e carinhos, e avancei por caminhos desconhecidos e carregados de beleza tão indescritível quanto inédita.



Agora,


Quando se lembrar de mim, lembre-se com afeto. Quando pensar em mim, pense com compaixão. Quando minha voz ressoar, que não seja fantasma, mas uma doce canção. Quando eu, inesperadamente, aparecer em uma foto, que não seja indesejável, mas a recordação de algo que pulsou vívido e alimentou a fome com um banquete.

Que o amor que foi intenso e concentrado agora espalhe-se sem barreiras, sem remorsos e sem cicatrizes. Que o que foi construído não desabe, mas possa servir de habitação para outras almas, e que cada decoração, cada retoque, não seja encoberto de cinza, mas contribua com um mosaico que ainda receberá novas cores e formas.

Quando se lembrar de mim, lembre-se com amor, e que o amor transforme tudo como uma enxurrada, como deve ser, como sempre foi. Pois nada será perdido, e sim transformado, nada será controlado, e sim permitido. Não há reservas, porque não há limites. A vida é urgente, a vida é contato, e o contato é amor.



28 de junho de 2017

Com doce voz

Ao som das batidas
Vou lhe contar uma história jamais contada

No compasso dos acordes
Maravilhas serão entoadas de minha garganta

Pálida história, que jamais viu a luz do sol
Medos tristonhos, escondidos no íntimo meu

Não precisaremos de fogueira, jogos ou pretextos
Para queimar a culpa até que se respire


Alívio



6 de junho de 2017

Passada rasteira

[N.A.] Maria pegou o chicote, estalou no lombo
É hoje, levanta a meia, amarra os cadarços,
Que chegou o dia



Da ponta donde vejo a ponte, está meio a meio, prestes a cair no precipício
Mas se salva como que por um fio úmido e transparente
Minha inocência se vai viajando, de braços e mãos a velejar
Um mar sereno que tranço com meus cabelos e fecha minha visão

Dali onde eu posso me postar, estou caído sobre farelos dourados, castanhas a brilhar
Dançando uma ciranda sem ninguém ver meus passos, inventando que tenho o compasso
E olho por cima do ombro, jogando charme ao léu, imaginando que alguém me veja
Da outra ponta de onde me ponho, onde só estrelas há, e com isso a paz que brota no meu coração

Sinto transparência dos sabores que me perpassam pelos lábios, sorrindo
E a doce melodia das folhagens, que acariciam meu rosto sedoso, pois que é feito de memórias
O melhor observador é inexistente, e por isso inigualável – ele olha conforme meu gosto
A sanfona que toca imprime o bater dos meus pés, que dão nós e os desatam, impossíveis, impossíveis

Cresce por detrás de mim o farfalhar das páginas, com elas os dias, os meses e as falhas
Eu enxergo por vários prismas, sento e me admiro com o que meus olhos, geniosos, contam-me
Eu vejo a família crescer, eu festejo o desabrochar da vida em cada pequeno ser, eu me orgulho
Na fila que eu deixo trilhada, sem que seja responsável, ouço palmas e ritmo a (me) vibrar

Da moita que balança aos anéis dos quais já me soltei, pulso um forró natural, pés na terra, poeira levantada
Minha inocência vai me acalentando, já sou santo não beatificado, sei o valor de minha intercessão
As sobrancelhas escuras dão a gravidade que a mão, leve, não tem, e executo a reza bem feita

O que vem após a dobra da janela, o que nos espera após aberta a porta, é preciso viver pra saber



15 de fevereiro de 2017

Mariposa

[N.A.] Estou sinceramente obcecado com o silêncio dentro de minha cabeça. Ouço distante e vejo longe, revelam-se fantasmas e flores que estavam cobertos pelos destroços.



Pego de uma toalha pois precisava limpar minha face lambuzada, arrasada. Mas nem tanto. Não me quebraram os pés ou pernas, e embora um tanto quanto manco, saio e olho, com olhos curiosos, para cima. Tormenta interminável, céus nebulosos, atmosfera ríspida. Tudo havia passado.

Sobraram cicatrizes em meu rosto, cigarros mal terminados no cinzeiro e um resquício de perfume que, se um dia já me alegrou as manhãs, agora espero extirpar com a luz forte que invade as janelas e que desce suntuosa pelo teto. Há luz em minha expressão.

Estive calado por tempos intermináveis, que só podiam ser verificados em meus olhos outrora úmidos e vazios. Como numa tumba, passei o que aqui dentro foram eras entoando cânticos a quem, quem?, não os poderia ouvir. E se estava em minhas mãos, em todo o tempo, a chave para inverter esse sarcófago, faltou-me tato para manuseá-la.

De noite, olho-me no espelho. O que vejo é resultado da falta de uma digna consideração sobre mim mesmo? Desfiz-me já das pulseiras, dos colares, dos anéis. Quero-me nu, completamente, de todas as ataduras que carreguei. Sem o peso, sem o temor, facilmente saem sorrisos de lábios ainda muito bem conservados, que guardam-se para o beijo no próximo cigarro, e do outro que ainda vem.

E o sangue que escorreu da face agora cicatrizada, para onde foi? Quando ponho-me sobre os prédios, abraçado às minhas próprias pernas dobradas, em diálogo com a fria neblina da madrugada, ainda não encontro os vestígios que deveriam ter riscado o chão tanto quanto o fizeram ao redor dos meus olhos. Permanecerá, portanto, apenas a minha última afirmação, quer seja somente um desejo acobertado de sabedoria, de que nada foi em vão.

Com tanto brilho saindo do olhar de agora, prevejo que tenha de usar óculos escuros para não ofuscar outras faces. Estendo, dia após dia, os pés para fora da cama, inundado de uma interminável manhã, e contemplo meu próprio despertar. Arrebentei o casulo.





15 de junho de 2016

Calendário

(Ignoro tudo que escrevi nas linhas acima e que, pelo milagre da computação, pude apagar.)



Mesmo contra todas as vontades, eu ainda olho para trás. Na imensidão escura da noite. O tempo é pouco para lamentações, mas divago, ainda, sobre a ausência – não de sentido, não de sentido –, sobre a ausência de materialidade em nossas palavras.

Frases sem peso, plumas expelidas pela boca, tantas e tanto, que me sufoco com língua suave sempre vibrando para manter acesa alguma esperança de haver sintonia entre nós, eternos dialogantes desse balão vazio.

Haverão ainda estes meus rabiscos sem vontade, que escrevo agora somente e unicamente porque por algum jeito precisam ser expelidos, haverão ainda de me dar um triunfo sobre a espera de aguardar o amanhã, sem contudo poder prever que a próxima etapa poderá ser de alguma forma substancialmente diferente.

Sobre a ausência, a busca incessante por um algo a fim de evitá-la é, definitivamente, a única forma de a manter afastada. O rubor só se o sente quando a caminhada é interrompida e os batimentos acelerados gastos para o movimento ficam, pois, sem seus motivos de ser.


Mesmo contra todas as vontades, eu ainda olho para trás, seguindo, passo após passo, adiante.



20 de abril de 2015

Aurora do Tempo

(Cigarro queimando na janela mostra como estou ausente, embora sentado em almofadas.)

Não é a cidade. Sou eu mesmo. Estar em janela na escuridão, observando os parcos carros que lá debaixo passam acelerados, num jogo de luzes vermelhas e amarelas, pisca pisca urbano, virará meu passatempo no decorrer dos anos. 

Sustentando um espírito leve à sombra dos desejos carnais, dos desejos vis e adolescentes, vi tudo se tornar pesaroso e desencantado demais. Como uma ovelhinha que se cobre com piche e se impregna dali para o fim.

Depois do bolso cheio, a calma de um futuro tranquilo se esparrama de tal forma que o sentido se esvai na pressa de saber E agora? E agora, como será colher estes frutos pelo findar dos anos, sentado nessa poltroninha de vime enquanto carros passam lá abaixo?

Não temos mais a idade deles, James, não somos mais atraentes como eles. Desejamos a juventude como uma fagocitose para nossa alma envelhecida, queremos sentir pulsar sobre nós, sentir no tato sobre a jugular, na quentura da língua, a energia viva que entumesce e deixa jovem, liso, sedoso.

Para os solitários como nós, todo o vinho de uma adega particular será pouco. Porque por mais que se revire, o avesso permite ainda mais uma torcida e nunca se atinge o âmago da dor, que permanece espessa e esfumaçada, concomitantemente, nos golpeando com sutileza.

Tenho medo do câncer e de doenças terminais, James. Ainda assim, fumo, fumo e celebro a vida. Mas tenho a certeza de que a consciência nos tornou descrentes, embora ainda injetemos nossa dose de tranquilizante e nos alienemos de quando em quando. Minhas costas doem, acho que é a cadeira. Faça lá mais um café, por favor.


7 de outubro de 2014

Reencontro

João desligou a televisão, já chega, já chega por hoje, inconformado com a política. Na cozinha, jogou uns pães velhos na frigideira gasta, gasta como estava sua manga comprida puída e cinzenta, tirou café quente do bule. Fumegando.

Maria, ajeitando a gola da camisa, repassava o ferro pela terceira vez, tarde chuvosa de terça-feira, olhava pela janela e via carros e sombrinhas nas ruas, mas por dentro a agitação de sua vida estava tal qual a emoção de esfregar o metal quente sobre a roupa teimosamente amarrotada.

Dois quarteirões dali, na Panificadora da Avenida, de roupas molhadas, Marcos se senta e pede um misto quente. Está frio na rua, e ainda traz ele a barra das calças encharcadas. O relógio funciona mas é difícil precisar os minutos. Porra de relógio vagabundo, pensa, ao ver que a água que havia entrado por dentro do visor evaporara pelo calor do braço e agora tudo estava embaçado. Mas trazia um regozijo profissional e dificilmente, naqueles dias, abaixava a cabeça. O horizonte se mostrava ensolarado em suas perspectivas.

Com a flanela e o frasco de álcool na mão, Elaine fazia movimentos circulares nas vitrines da boutique, tentando remover as marcas dos dedos dos clientes que não sabiam olhar com os olhos os ternos em promoção, os sapatos que, ela sabia, despedaçariam as solas em poucos meses, produtos velhos de estoque que justificavam a liquidação. Elaine era absorvida pelo entra e sai dos clientes alvoroçados e desde que assumira o trabalho na Autónomo tinha menos tempo para repensar sua trajetória de moça radicada na capital-cidade-promessa. Coisas da rotina.


Por um telefonema, Marcos e João se reencontraram. João, que tentava levar a vida de escritor e andava meio mal sucedido naqueles meses, fora alguns artigos pagos para jornais e os bicos como revisor de texto e normas para monografias. Marcos, executivo promissor, oito anos mais novo e notadamente mais visionário.

Maria era dona da farmácia que lutava por sobreviver num bairro suburbano ante o avanço cada vez mais agressivo das redes de drogarias que demoliam a concorrência de modo avassalador. Vivia na sobreloja, dividindo sua atenção com os afazeres domésticos e Jaciara, o peixe cor de rosa que ganhara no bingo beneficente da paróquia.

Uns nove anos atrás, se não me falha a memória, Maria e Elaine se formavam na mesma turma de graduação. Do interior do estado elas seguiriam, separadamente, rumo à mesma cidade, sem saber ao certo o que as esperaria. Maria aproveitou da prática em outras farmácias e poupou a ponto de montar o próprio negócio. A frieza da nova cidade a fez forte e boa administradora. Elaine amargava o descaso com suas próprias escolhas, que, numa das várias instâncias, a levaram a desperdiçar a mocidade com uma formação pela qual nunca se interessou.

Marcos 25, João 33. Conheceram-se num festival de arte, tempos atrás, imensidões de realidades atrás. João era um entusiasta, Marcos titubeava entre escolher o Direito ou a Engenharia – mundos distantes como se um se chamasse ele mesmo e o outro, João. Foi um romance de fim de semana que se estendeu por alguns meses, com toques de produção norte-americana aqui e ali. Os sonhos juvenis que tinham terreno para crescerem, numa certa irresponsabilidade que acompanhava o entusiasmo explosivo de João e a pouca idade de Marcos.

Elaine nunca havia tocado uma mulher. Até aquela semana, em que se permitira sair de sua vidinha interiorana para conhecer um evento que chamavam de cult, era quase a moça boba que admira os homens que lhe passam na janela, com exceção de que estávamos lá no século XXI, e esses romantismos não existem mais.

Samba, cerveja, garoa. Frio. Volta pra casa, todos meio altos, frio, abraços. Casa grande, alugada, alguns remanescentes da festa daquela noite, gente aqui, cômodos vazios ali. Cerveja, funk, música eletrônica. Risos, boca de Elaine sendo tocada pelos dedos adocicados de Maria, volúpia, medo. Carícias que jamais seriam tomadas como cristãs, 'Deus me perdoe' num íntimo abafado pelo desejo, curiosidade e pavor. Depois daquela noite, Elaine conheceu os seios rijos de Maria e a crueldade do autojulgamento e da punição da criação tradicional. Fechada em si, mal ousou desafiar palavras à colega de sala nos anos que viriam. Quando muito, olhares que se prolongavam ao encontro da outra e logo eram tolhidos pela mente perversamente moral.

Maria, que não tinha mais idade mas sempre fora mais desligada, desplugada das convicções morais, usava roupa relaxada e não escovava os cabelos. Também não se importou – ou não se mordeu – com o afastamento da affair de uma noite. A vida valia mais que se prender a acontecimentos e pessoas conflituosas.

O tempo passou e as birras de João se tornaram mais frequentes. Amargo e extremista, deixou que sua visão do jeito de ser das coisas obscurecesse o retrato que tinha do seu par mais juvenil. Marcos não tinha perspectivas, ele dizia. Era jovem demais, inocente demais, perdido demais. Apolítico. Marcos, que não queria ser direitista ou esquerdista, nem estava aí para ideologias e preferia se concentrar nos seriados que a TV paga do pai lhe oferecia, sofreu mas não entendeu quando a frieza de seu namorado se instalou de vez. Chorou, secou a fonte, diminuiu-se, mas não pode evitar um fim prenunciado.


Deus que me perdoe, lembrou Elaine quando adentrou a farmácia atrás de um ansiolítico qualquer que a fizesse dormir mais de quatro horas por noite. As olheiras profundas as tinha encobertas por espessa maquiagem, com abuso de um pó de tom canela como sua pele. Um nó na garganta contorceu a voz de Maria, Maria do ferro de passar roupa e da vida adulta amarrotada e sem graça como uma camisa social.


Marcos, com uma mão no misto e outra no jornal do dia anterior, deteve-se por instantes na análise política que buscava mostrar as tendênciasvnegativas que viriam com a possível vitória da oposição naquelas eleições de outubro. As opiniões rasgadas o atravessaram tanto quanto a assinatura: João Queiroz Martins. De repente, naquelas palavras duras, viu-se um estudante de cursinho, bermudinhas apertadas e mocassim.

João lavava o bule e secou apressadamente as mãos para atender o telefone que tocava.

- Alô?

- Alô. João?

- Pois não, é ele.

- Jo... João. Sabe quem está falando?

- Não, não faço ideia. Quem é? É pra monografia?

- É o Marcos.

- Marcos?

- O Marcos de sete anos atrás.

- O... oi? Como?


Na noite seguinte e nas que se seguiram, Maria passou a se esmerar mais nos cuidados com a casa. Elaine pediu aviso e demitia-se da Boutique Autónomo, que, num passado distante, já fora referência em moda masculina, numa época em que a capital ainda ensaiava passos de cidade grande. Num passado menos distante, Elaine se martirizara com concepções morais que trazia da família patriarcal que a gerara. Agora, a vida encontrava meios para se fazer valer, e, diluídos nos impasses do cotidiano, dois pares de olhos pareciam encenar um conto de fadas, meio às avessas e com referências que pareciam originárias duma teledramaturgia. Maria e Elaine, cobertas, mãos atadas, dormindo suavemente.


Depois de uma noite que entrava na madrugada, aquecida pelos vinhos baratos do escritor puído, pelas ices do administrador de olhos claros e umedecida por lágrimas e contestações, Marcos seguiu para casa num táxi prateado. Na mesa de João ficava um cartão de negócios, que lhe podia valer por ter um telefone e e-mail de contato, mas jamais seria utilizado. O menino crescera e o entusiasta político se apequenara. Sem intimidações ou trocas de farpas, puderam ver que o tempo que mudara as perspectivas de ambos também secara o terreno em que um dia floresceram esperanças de uma vida hollywoodiana. No deserto daquela distância, somente lágrimas poderiam matar a sede, mas eram salgadas e o solo não se faria fértil novamente.

Quando fechou a porta, embasbacado pelo reencontro, pelo acaso, pelas mudanças que via operadas em Marcos, pela forma fria com que um dia havia ensaiado um fracasso intelectual no então pueril companheiro, levantou as mãos para o céu, fechou os olhos atormentados e vermelhos e gritou em silêncio. Pudesse ele, naquele exato instante, ser ouvido pelos anos e anos que se passaram.

Naquela noite, dormira com o rosto marejado, pensando na mediocridade que a vida podia assumir e como foram os caminhos para chegar até ali. Nas noites que se seguiram, o torpor diminuiu e os tormentos do próprio cotidiano cuidaram de apagar aquele êxtase de uma noite, e a vida seguiu-se.


(imagem: Reencontro, de Iamara Saute. Disponível em http://iamarasaute.com.br/)

7 de julho de 2014

Juaum

Juaum se debruça sobre as cobertas. É moleque na vida real e mlk na dúbia vida virtual. Juaum dezessete anos, pele sem pelo, tom de canela que foi ao forno para dourar. Juaum boca carnuda, penugem ao invés de bigode, que cultiva com orgulho, Juaum marginal não marginalizado, Juaum levado e frágil, brigão e retraído, feminino e masculino.

Na piscina, corpo esbelto com curvas suaves, é um torpedo humano, olhos levemente puxados e nariz esculpido, orelhas comportadas, mas o olhar é pronunciado, é prenuncia de perigo, quem mexe com Juaum mexe com a força criadora, o braço da Justiça, que é vendada, mas com lenço, e enxerga por cima dos panos.

Juaum estudioso e preguiçoso, queria subir na vida mas tinha delírio nas escadas, Midas moderno, tinha desdém do que não fosse seu e protegia suas posses como que de ouro fossem. Juaum lolito, Juaum esperto, precoce e ardiloso. Marrento e angelical, uma miragem em meio a um oceano salgado, miragem tropical, com marca de sunga no corpo.

Um dia Juaum amou. Despiu-se de suas vaidades e projetou-se num futuro que não era seu. Deixou de lado a falsa humildade e assumiu o olhar perverso que era sua alma sem cortinas. Roupa cinturada, braços musculosos, gestos delicados, passos de gato, Juaum não pisa em falso e brinca com suas vítimas, joga-as para cima e dá leves patadas, cravando-lhes sutilmente as garras fulminantes.

Juaum manso e arrebatador, sincero e covarde, Juaum pleno. Possessivo e ciumento, protetor de sua cria, que também era seu tutor. Juaum que encantava pela beleza e paralisava como Medusa, Juaum canto de sereia e espinhos de baiacu. Juaum tóxico e doce, armadilha armada e certeira. Juaum quase absoluto, porque o quase sinaliza que no próximo estágio está a perfeição destilada, em perfume e encanto.

Juaum bate, Juaum arranha o carro, se humilha em plena rodovia, Juaum quer ser amado e não pode admitir ser trocado. Juaum quer atenção, Juaum merece dedicação, quem não quer amar Juaum? Juaum troféu exposto na vitrine da boate, Juaum pau grosso, Juaum lábios suaves. Você não pode não querer Juaum.

Juaum apaixonado, lâmina debaixo das mãos, Juaum que faz sangrar e berra, Juaum que se atira no chão, Juaum bebê desprotegido, Juaum que precisa de sua mão, Juaum, encanto, Juaum. Por que você teria medo de Juaum?

Juaum jantar romântico, Juaum estilhaços de louça pelos ares, Juaum rastejando-se atrás de seus pés, Juaum precisa de seu carinho para se manter são, seu olhar fixo é o motivo da continuidade da vida de Juaum. Não percebes que assim pões em desespero o próprio Juaum, que pra você vive e arrasta-se por todas as esquinas? Juaum e você em fuga, Juaum perseguição. Não pode se livrar assim de Juaum.

Juaum fogoso e bom marido, Juaum perseverante e bunda empinada, Juaum povoa seus sonhos e lhe faz gritar no meio da noite, Juaum pode estar em todos os lugares, por que não estaria em sua cama agora Juaum? Se Juaum quer, Juaum tem de ter, Juaum deseja, Juaum exige, Juaum está cobrando sua contrapartida, por que não respirar por Juaum?

Juaum corta seus amigos, ninguém precisa de ninguém além de Juaum, Juaum modesto, Juaum beira a perfeição. Juaum te avisou, não se deve brincar com Juaum. Juaum criança indefesa, Juaum adolescente problemático, Juaum corpo de consumo de todos os sonhadores. Juaum rosto em pranto, Juaum gritos abafados, Juaum sexo cavalar, Juaum pés bem cuidados. Você não vai escapar da obsessão de Juaum.


3 de julho de 2014

Confissão em guardanapo



A cidade nos oprime. Os sons nos reprimem. E ciclicamente, vamos nos estourando em uma imensa nuvem de sentimentos, cada qual fora de seu lugar. São milhares de janelas, luzes, apartamentos. Olhos em vigia, de uma entidade que jamais dorme. E vivemos escondidos nas esquinas, longe dos holofotes. Somos diminutos, frente à imensa solidão de uma multidão de desconhecidos. Mas nosso maior desconhecido está dentro de nós. Os limites, as conformações, os vacilos: andamos na beira. E vamos nos implodindo em um tufão de paranoias, cada qual reflexo de uma lembrança.



28 de maio de 2014

A Procura e o Encontro

"O velho senhor se cansou da caminhada e sentou à beira da estrada."

Andamos, andamos, e colhemos flores desta vida tão amigável. Se seus dias são de sorriso, também são os meus, e manteiga quente escorrendo no pão todas as manhãs. Por onde passo vemos senhoras e chapéus que se cumprimentam. No bailar, todas as vidas seguem como girassóis, a rodar em acompanhamento à luz.
Mas passarão dias e dias mais felizes e algo soará estranho. Por mais que se ande, não se sai do caminho, que é um eterno andar e cujo retorno só nos leva ao mesmo círculo. Ele, que andou mais que nós, já se foi e, ainda sim, não encontrou o que procurava.
Meu cigarro queima no cinzeiro mais próximo e me diz “É uma perda de tempo”, e o velho jazz da big band alerta que não há mais rota possível. A procura só acharia o encontro se se andasse para trás, como se regredíssemos o tempo sem que, no entanto, houvesse um regresso. Como voltar do avesso.
E, no entanto, celebramos a tecnologia e fazemos louvores aos botões, às luzes. Estamos encapsulados nessa modernidade sintética e não há escapatória. Os que tentaram morreram, caminhando. Sabemos que ele andou buscando, sem no entanto encontrar.
No bailar, todas as vidas seguem como girassóis, mas a caminhada conduz aos mesmos questionamentos. À busca de soluções, entulhamo-nos com os significados que encontramos pela jornada.


10 de março de 2014

Anos depois, aquela estranha visista


“Hoje não escrevo para mim, não escrevo por mim, não penso, não sinto, digito, transfiro, enojo-me, tenho repulsa, sou atraído, ensaio, caio, arrasto para eles.”


(Foi aceso o último cigarro do maço. O maço não será o último, mas o ato é simbolicamente valioso. Porque são onze e cinquenta e nove de um domingo qualquer, e até amanhã não haverá mais cigarro que supra. Mas isso, isso são notas apenas, e nem deveriam estar aqui. Eu tento não me por aqui, mas tudo isso são pedaços meus, refletidos nos movimentos histéricos feitos nas teclas. Isso tudo sou eu. Embora hoje eu não escreva para mim. Retiro-me.)


Anos depois, aquela estranha visita. Ao tempo passado de quando você foi feliz e não soube. Aos desejos suprimidos, reprimidos por uma necessidade intensa de carinho. Misericórdia, Senhor! Eu travo esse diálogo comigo, que não é um monólogo porque, eu sei, há alguém neste interior que grita, e pede pouco, pede um facho de luz, um lugar ao sol, por minutos, por momentos. Mas está sufocado, e nesse diálogo de raiva, aqui, bem aqui, sobram cinzas e uma garganta engasgada, que dói ao gemer.

Mas ninguém nunca foi feliz realmente. Porque a promessa do dia melhor é para amanhã. Quando poderemos repousar a cabeça confortavelmente no travesseiro, sem problemas e sem medo. E você consulta seu relógio, faltará muito para o próximo dia? Durmo hoje porque quero que o amanhã chegue logo, e minha rotina se faz entre uma ou outra espiada no calendário, está logo ali, o dia do sorriso verdadeiro, que se estenderá de orelha a orelha. O dia que vou me olhar no espelho e sentirei tesão pelo que vejo. O dia em que estiver adornado conforme meus planos, com as chaves certas no bolso. Até lá, sou escravo da ilusão, e gastamos os dias com promessas.

O tesão e a vida são um só, e seguem da mesma maneira. A vontade de possuir é a vontade de destruir, e de se autoconsumir. O que eu faço com o corpo do outro é destruição, mas gosto e gasto-o a meu bel prazer, até que jorre por toda a cama este esperma barato com odor de pecado. Depois do consumo, o momento passageiro de conforto, do ápice. A cama é arena de batalha, e o objetivo do jogo não é se satisfazer, nem satisfazer o outro. É a batalha do ego, e vence sempre a performance. E nesse vai e vem passam-se corpos, tempo, sentimentos debulhados e lençóis lavados, cheirando a amaciante.

Anos depois, aquela estranha visita. Por que tendo vivido tanto, parece que andamos tão pouco? Por que, tendo passado tantos dissabores, parece que construímos coisa tão miserável? Até então não se viveu plenamente? O mais doloroso é quando se anda próximo ao fim, quando já se vê o fim do horizonte, e carregamos a sensação de ingratidão conosco mesmos. Por que fizemos de tamanhos braços e pernas um legado tão inexistente? Por que não gritamos e vibramos de verdade? Por que engolimos tantas palavras boas e ruins, e por que perdemos tantas horas para rir da desgraça do próximo, enquanto dançávamos cavando nosso próprio túmulo?

Aquela estranha visita, anos depois. No nosso íntimo, um coração sangra, e é dor genuína. Infelizmente, mais genuína do que fomos em nossa existência toda. E ninguém nos cobrará além de nós mesmos. E pagaremos o preço, amargo, por cada ensaio, por cada simulação. Quem titubeia não vive, quem ensaia não vive, quem se senta no muro não vive. Assiste, no máximo, à vida que gostaria de ter, observando-a e invejando-a no outro.


A agonia está no quarto, escuro, e sozinho, com cheiro de gozo ainda quente na coberta e uma música mal sucedida no rádio da sala. Anos depois, aquela estranha visita ao que poderia ter sido tão maravilhoso. Mas não passou de uma maquete metida numa bolha.



3 de dezembro de 2013

Sobre a garganta e adjacências

"Quem ouviu o último tiro?
O último grito
O último olhar perdido
O último sorriso desencontrado
Quem escolheu o último acusado?"


Estralo os dedos porque quero, e me embaso de ocorrências fúteis nas últimas negociações. Tenho um gosto tão podre como o dedo e não me esforço para deixá-lo transparecer. Há uma pedra entalada na garganta e empurro com o dedo, forçando-a para baixo com cerveja e outras coisas amargas. Nada de doçuras por hoje.

A falta de talento me inebria, a falta de tato me enoja, e poucas coisas me constroem. Chega de dedos por hoje. Chega de doçuras, de melaços e de rebolados. Esse desespero desencontrado com meu estado pacífico de espírito bate na face como um tapa de pura sacanagem. Coisa baixa, de linha perversa. Somos todos bons animais, adestrados para sugar o melhor. Nada de doçuras por hoje.

Não preciso de um amor, mas de um admirador. Não quero compaixão, quero plateia. E que saiba aplaudir, que saiba bajular. Pago, se for preciso. Não gosto de observar que estou sendo observado. Mas gosto que me observem. Enquanto desfila o corpo pululante entre as folhas secas, sem graça bem como sem graciosidade, enquanto saltita as calçadas, quero holofotes virados para mim.

Não me importo de ser asqueroso. O asco me comove, e como pedra, me deixo rolar e encardir. Faz parte do meu cotidiano. Não me importa espantar, e continua sendo uma jogada divertida, deixar bocas abertas pela passagem do movimento deselegante. Despojado e despido. Mas carrega-se em punho a fumaça, guardiã fiel de todas as impunidades.

Há um escarro cremoso e sedoso preso na garganta, e por querer retê-lo é que fecho a boca. Calado, armado e pronto para cuspir. Olhos faiscantes, parecem belos? É o olhar inquieto de um porco encurralado, que a tudo observa, e mais urra que pensa. Se o olhar reconhece o perigo, o coração se acende e apaga, como um curto-circuito, é falha, é frio, é bonito de se ver. Mãos frias, coração quente, e é por isso que meu tato é fumegante, surpreendente. Há alguma coisa de negação que, no entanto, é uma súplica bem disfarçada.

Quem ouviu o último olhar perdido, o último sorriso desencontrado? Sem destinatário, é jogado a esmo, esforçoso por parecer natural e não planejado, pois tem-se medo da vergonha de ser jogado ao vácuo. Amarelo o sorriso, branca a alma, rugosa a região dos olhos. Dedos finos cor de carne desejosos de percorrer algum corpo jovial qualquer, repugnantes ao primeiro contato, amedrontadores ao segundo. Nada de dedos por hoje. O pior não será o asco enquanto para além dele houver a invisibilidade.


Tantas ocorrências fúteis e esse esforço por parecer desesperado com a surpresa banal. A preocupação dos outros em se padronizar e conferir valor a detalhes me faz cuspir aquele escarro sem nem mesmo planejar fazê-lo. Chega de doçuras por hoje.



2 de novembro de 2013

O Rei, destronado

Mas de repente uma névoa de umidade e tristeza moveu-me céus e terras, abriu brechas largas no meu coração pequeno, este betume. Os olhos molhados, o olhar cansado, a visão turva. E via turmas e grandes corjas movimentando-se para cima, movimentando-se para baixo, num passeio de vai e vem, risadas, lágrimas, braços dados, pernas jogadas.

Tenho cadeiras de madeiras que não falam e um jogo de talheres que não são de prata. Mas me pouparão da solidão quando o último tiver se levantado da minha cama dura, esta que não consegue reter ninguém por mais de alguns minutos. E uma névoa me cobriu os olhos por alguns instantes, e nem muitas toalhas de muitas lojas de departamentos os conseguiriam desanuviar.

Garrafas na mesa fazem parte de uma decoração antiquada, onde tudo já está posto onde está e as paredes gritam palavras de conformação. De repente a casa fica apertada, de repente as paredes se distanciam e o cômodo fica grande. Cortinas retorcidas pelo vento, este vento, esta tormenta que vibra as janelas e levanta os tapetes. Tapetes voadores pela casa, panos estalando no varal, chicoteiam o ar e a mim.

Contudo tenho chaves e outros cigarros que me pouparão do desfecho triste quando o último tiver voltado a si e, numa repulsa automática depois do prazer barato, levantar-se e dirigir-se à porta num só golpe. E a porta, misericordiosa, mantém-se aberta à espera de alguma brisa que queira varrer da casa o cheiro de glória murcha.


Algumas filosofias baratas, aparentemente ridículas, e os cigarros permanecem.