I
Começou
cedo o dia, com um bandolim tocando à porta, mas ninguém queria entrar,
não. Era um desses viajantes aí, que vivem a vida como se amanhã
fosse a morte. Desses aí, que festejam sem esperar que a alegria
seja recompensada. Porque tem gente que é assim, né? A alegria se
estampa no rosto, mas não é ela de verdade ali. É um disfarce,
inconsciente, talvez, como que se o seu uso fosse atrair alguma
felicidade mais... sólida. Deixemos os fingidores de lado. E os
festejadores também. Em resumo, o dia começou com um bandolim
tocando à porta, freneticamente, mas logo sumiu, foi seguir o
caminho.
Depois,
o cheiro do café. Não vinha dali, daquela cozinha, visto que, além
do vivente que agora acordava, ninguém mais habitava a casa. Vinha
doutras cozinhas, talvez um apartamento, da sala de espera do
consultório odontológico duas casas ao lado. Da sua cozinha, não.
Uma vez desperto, contudo, tratou ele também de fazer o seu próprio.
Coçava a barba, o cabelo espetado, desesperançoso de um corte ou um
pente que fosse, o rosto ainda abobado de sono. E o café coando.
O
sol atravessava ardente as janelas da cozinha e da copa, mesmo que
fossem ainda oito da manhã. Oito da manhã, oito da manhã. Em
tempos não muito distantes, já estaria na lida a estas horas,
conversando, trabalhando, fazendo valer a manhã. Mas não agora.
Agora, pelo contrário, oito da manhã era cedo demasiado. E era
estranho que o sol estivesse tão forte tão cedo. O contraste da luz
com a fumaça do cigarro recém aceso tornava a imagem do cômodo
densa, espessa. Dormia de blusa de frio, naquele tempo de início de
inverno. O frio lhe castigava tudo, inclusive os pés. Blusa de frio
e cuecas, era tudo o que costumava vestir durante as noites. Largou o
cigarro no cinzeiro pra poder lavar uma xícara.
O
tempo pode mudar tudo, ainda que nem mesmo um metro seja percorrido.
O tempo mudara muitas coisas. Do fundo do sofá recoberto de colchas,
colocadas ali mais para disfarçar o envelhecimento do móvel que pra
qualquer outra coisa, ele dobrava compulsivamente as pontas das
mangas da blusa azul-marinho-gasto, isso que era uma mania
recém-adquirida. O ócio nos faz adquirir manias. E medos. Quando
não ocupava os dedos com este artesanato infrutífero, ocupava-os na
boca, a cortar as cutículas com os dentes, ou com o segurar do
cigarro, da alça da xícara. Ali, no sofá, de pernas cruzadas e
olhar abstraído, ainda conseguia se sentir um deus. Meio decaído,
mas um deus.
Não
era o fracasso que lhe preocupava. Talvez fosse, talvez, mas não
dentro do que ele percebia como seu mundo de agora. Não era fracasso
o nome daquilo. Era um êxtase infindável, mas que de interminável
tornou-se cíclico. Como as lágrimas, como o olhar que vagueava em
busca de sentidos. Sentidos. Não se tratava de morte, nem de
sensações físicas. Se era morte era antes um falecimento do
espírito. Sentidos. Olhar lânguido, quase bêbado. Fumaça, odores,
panos velhos, sentidos. Cíclico.
O
tempo se tornava cada vez mais abstrato. Podia ser medido em
relógios, e havia muitos em paredes variadas, alguns fora do
horário, alguns sem pilha. Podia ser medido pelas folhas do
calendário da padaria, distribuído como brinde todos os finais e
inícios de ano. Mas eram todas medições abstratas. Porque só se
mede a passagem do tempo em situações concretizadas. Mede-se pela intensidade imprimida na vida. Não, não se conta o tempo em
dias ou anos, mas em vitórias, em eras de bonança e,
inevitavelmente, em períodos de desgraça. O tempo se tornava
abstrato para o vivente daquela casa. E, no mais, a única coisa que
lhe sobrava fazer era literatura barata.
II
Depois
da tormenta, o céu limpo não veio. Foi-se-lhe a mãe, o emprego e,
com este último, a promessa de uma carreira mais sólida, que parecia já conquistada e se desfez em pó. Estava
perdido como cão sem dono, e o dinheiro escasseava. Ele estava preso
ao passado, preso àquela casa vazia, que, com ele ali, com este novo
ele, era mais vazia que se desabitada fosse. Foi tormenta caída duma
só vez, e a ventania dolorosa o dobrou. Agora, mais que o dinheiro,
que os laços parentais, que a rotina do trabalho levado por mais de
nove anos, por pouco dez, fora-lhe embora o sentido. E com o sentido,
o sono, o senso de tempo, os motivos para pensar as oito horas da
manhã como meia-idade da manhã. Esvaiu-se tudo. Tinha manias agora,
manias e literatura barata.
-
Quem sou eu!?, bradou numa noite, desesperado, com os cabelos
alvoroçados, olhos em fúria, olhando pela janela. Ele, que se
perdera onde dificilmente alguém poderia o encontrar. Perdera-se em
si. Apontava os braços para cima, como que se esperasse alguém para
levá-lo, para mostrar algo. Ele perdera-se por completo. A dor do
outro é sempre alguma coisa distante, é sempre alguma coisa
sintética para nós. A depressão é como uma porta. Desavisado,
invariavelmente se caminha em direção a ela. Não é convidativa,
não é esclarecedora. Mas há algo de involuntário ali. A porta
estabelece-se diante de ti e, duma ora para outra, é o único
caminho possível.
-
Quem sou eu!?, gritou novamente. Não estava mais na janela. Estava
parado, sentado na beira da cama, cotovelos sobre os joelhos. Olhava
conflitante o espelho, via seu próprio conflito naqueles olhos
acastanhados, rebuscados, enervados.
-
Quem és tu? Quem és tu, meu caro?, respondeu o espelho, falando
pelo reflexo, e era como uma resposta que partia de seu interior. Ou
não?
Aquela
resposta, em forma de pergunta, era retórica, no mínimo. Pois que o
espelho o acompanhava há quase uma década, foi comprado com seu
segundo salário quando assumira o cargo de editor. O espelho,
indubitavelmente, sabia de tudo. Porque grande parte de sua vida, ou
ao menos dos picos dela, passou-se naquele quarto. O espelho a tudo
via. E, quem sabe, por que não?, a tudo ouvia também. Era, então,
uma provocação? Era um auxílio?
-
Fui eu quem falou isso?
-
Depende. Olhe pra mim, o que tu vês? Tu? Eu?
O
homem enxergava tudo aquilo desconfiado. Cruzou as pernas sobre a
cama e firmou o olhar. O reflexo o acompanhava instantaneamente em todos
os movimentos.
-
Não me importa realmente se fui eu ou não. Não sei quem sou e
pouco tem me importado lembrar que seja meu nome.
-
Porque não é mais teu nome, decerto. Ou porque, talvez, tu já
estejas deteriorado nesta casa e não passes de um fluido, de um
vapor condenado a vagar. Tu, não sabendo mais da própria história,
a mim desabilita, e nem sei mais se reflito alguma coisa.
-
Ou se sou eu mesmo o próprio reflexo, perdido sem um referente a
fazer menção.
-
Olhe para esta merda de vida. Esta existência medíocre que tu lutas
a todos os momentos para fazer continuar. Não tens mais sentido
algum, vagas pela casa, mofo!, mofo és tu, agora.
E
lágrimas caiam da face dele, ainda tentando não se abater.
-
Chega! Chega! Não quero mais ouvir, não quero saber de nada. De
nada!
-
Mas se és tu quem fala, que posso fazer? Não percebeste que te
acusas, a ti, a ti mesmo? Eu não falo, jamais falei-te uma palavra
sequer. Tua mente fala, e tu escutas estas vozes porque estás
perdido dentro de um calabouço. Tornaste-te um febril, não
consegues mais desvencilhar-te das vozes que ecoam aí. Quem és tu,
quem és? Responda-me, para que eu não pense que enlouqueci e estou
falando com o vento.
-
Por que me mutilas assim? Por que eu te ouço ainda, demônio? Por
quê? Por que eu não arrebento essa casca, essa doença, por quê?
-
Por quê?
-
Porque eu não sei onde estou. Por que eu não sei onde estou?! Que
foi feito de meus planos juvenis, que foi feito das minhas ideias?
-
Tu as perdeste. Tu te esqueces de que o tempo não para jamais, é
ele quem te engole, pouco a pouco tu sucumbes a ele. Perdeste teu
tempo a procurar pelo futuro e o futuro não te chegará jamais. Ou
podes ainda considerar que é este o teu futuro; é isto que tu
sonhavas?
Ele
torcia os dedos, estalava-os nervosamente, fumava, tossia, fumava,
apertava as têmporas. Chorava como uma criança a quem lhe houvessem
tomado o brinquedo.
-
Como te foi levada a mãe? Como passaste os últimos anos com ela? E
os amigos teus, homem? Foi por incompetência que perdeste o
trabalho?
-
Incompetência...
-
Trabalhaste por uma década para aquela porra de jornal pra não
conseguires um merecimento além da demissão? Que vida ingrata.
A
demissão, a mãe, os esporros, as noites sem dormir, os desgastes
amorosos pela falta de horário, a mesquinhez a que fora se
acometendo, as unhas amareladas, o espírito amofinado que se
sobressaíra após tantos anos e que o vencera, enfim. Era agora
aquele ali, escritor frustrado, solitário de si mesmo. E a solidão
é um monstro que nos abraça, sem que possamos tomar ciência.
Tapa-nos os olhos até que nos acostumemos e, !, parece que foi
sempre assim, não? Quem, afinal, reconhece-se em si, em si somente,
longe de outros e de seu próprio reflexo? Quem sabe quem é sem
necessitar de limites sociais, sem se medir pela ação do outro?
Não
se sabe exatamente qual foi o destino do nosso homem. Há quem diga
que ele tenha se matado, embora morto já estivesse. Outros, que ele
se consumiu frente ao espelho, tornando-se indistinguível de seu
reflexo. O certo é que jamais saiu daquela casa.
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