Inevitável acender um cigarro, e
danem-se as disposições contrárias.
Não me importa se você não me olhar. Ainda assim continuarei passando. Deslizarei meus dedos por sua
pele, espalharei pérolas pelo chão e beijar-te-ei os pés, numa
adoração desmedida.
Quando recebi aquele bilhete, o
guardei; sabia que poderia ser o último de uma vida inteira. Poderia
ser o último trocar de olhares com outra pessoa humana, com outro
animal que materializasse sentimentos em um beijo. Não, não são
todos os que sabem beijar. Nem todos transcendem pelas vísceras as
emoções e falam até mesmo por um aperto de mãos. Ah, sou um
espírito tão solitário.
Quando olhei pela última vez, vi um
homem parado à porta do shopping daquela avenida. Eram dez da noite,
e era domingo. Carregava um embrulho numa das mãos, ração para
gato, e a outra a tinha solta no ar. Inconscientemente, quem sabe, não procurava uma outra mão à qual pudesse entrelaçar
os dedos? O quão inocente podia ser, o quão solitário não o era?
Fez-me pensar, parar, hesitar.
Quem acompanharia o estranho para casa,
senão sua sombra, fraca pelas luzes débeis dos postes? Quem o
esperaria em casa, além do bichano? Da próxima vez que tiver
vontade de gritar, gritarei. Quando me acometer vontade de
agarrar-te, dar-te-ei uma rasteira e seu corpo premirei com toda a
força de uma alma desesperada pela vida.
Acendo outro cigarro, e danem-se as
disposições contrárias, porque se eu não for viver para meu
prazer, que me adianta seguir a cartilha de bons modos?
Ah, eu tenho saudade de tanta gente,
oh, Pai! E tenho saudade da gente que nem conheci ainda, como é
possível? Expilo pelo universo energias de amor, explosões que
acometem meu espírito noturno. Talvez um dia haja resposta, e me
batam na porta, encontrem-me no supermercado. Quantas surpresas o
jogo da existência não reserva entre um minuto e outro, entre uma
prateleira e outra?
E, enquanto entrava a madrugada, o
homem, sentado em sua poltrona acolchoada, envolto de carpetes e
móveis de madeira escura e maciça, tinha em seu colo um felino de
olhos verdes, quase bioluminescentes. Uma das mãos, apenas uma,
apoiada sobre o colo. E assim adormeceu.
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