28 de dezembro de 2010

Escritório & Expediente

Aconteceu de eu escolher me esconder aqui, nessa construção de concreto, nesse escritório cinzento. Onde as pessoas falam demais sem escutar o que os ouvidos suplicam para ouvir. Eu percorri muitas cadeiras rodantes, muitos pisos escorregadios, eu subi por cabos azuis de internetes de velocidade insatisfatórias, eu andei por dutos de ar empoeirados, eu desci as escadas erradas.

À noite eu estive nas janelas à sua espera, isso aqui tudo é muito frio na escuridão. Eu guardei pra você tudo o que colocaram na pequena geladeira, eu escondi os docinhos. Eu me disfarcei de papéis de impressora, eu me cobri com jornal. Eu troquei os monitores de lugar, eu pintei um coração. Eu fiquei me fingindo de mouse, defeituoso e jogado, só para esperar por você.

Eu me enganei de porta, eu subi sentado no contrapeso do elevador. Eu usei as saídas de incêndio para entrar, eu invadi a copa para beber café. Eu acompanhei toda a implantação do jardim ali fora, contemplei o gramado mudar sua tonalidade, fui atingido pelos seus pedaços aparados. Estive na diretoria, li alguns papéis que não poderia, guardei os outros. Sorri para os superiores, beijei os subalternos. Eu dancei pelos corredores enquanto todos estavam para o almoço, eu abanei o braço na janela entreaberta. Quando as passagens de ar entupiram, eu estava lá para mover as hélices novamente, eu escorreguei pelos corredores subterrâneos de roupas sujas.

E, embora ninguém tenha percebido minha presença, qualquer atento me encontraria espiando por detrás dos armários de arquivos. Ninguém os lê, a poeira e as traças os consomem. Todos estão muito [pré]ocupados com suas rotinas engessadas e seus passos estão contados e registrados, não há tempo a perder. Não há nada mais para olhar, não há novidades no ar. As cores já foram todas catalogadas, não há odores a mais por descobrir. Tudo o que quiseres saber, encontrarás nas páginas virtuais postadas à sua frente, contra ou a favor de sua vontade. Os olhares estão voltados para os caminhos internos feitos sob essas fileiras de lâmpadas todos os dias, não há mais curiosidade. A imaginação e a criatividade estão sepultadas.

Eu apostei corrida com as cadeiras de rodinhas pretas da sala da coordenação, eu me bronzeei deitado na mesa de reuniões. Ninguém percebeu quando todos os relógios saíram de sintonia e, ao menos durante um dia, os expedientes tiveram horários distintos. Eu pus Ubuntu nos computadores e nem todos reclamaram. Nas confraternizações, eu furtei as Cocas e os guaranás que, sim, iam sobrar de qualquer forma. Se ninguém possui habilidade ou coragem para tal, como poderiam, de um dia para o outro, estarem todas limpas as vidraças?

Aconteceu de, depois de toda essa desilusão, você ter escolhido viajar e eu, me esconder aqui, nesse escritório de concreto, nessa construção cinzenta. Estou mais próximo de você do que a sua mão está todos os dias às sete. Só eu sei de coisas que nem sua cintura delineada percebeu. E eu continuo reservando os docinhos da geladeira. Pra você.






21 de dezembro de 2010

Saudades de casa...

O som distante me traz a outras memórias. Eu estou acordado, estou acordado e seguro sua mão. Estamos naquela rua estranha, aquela rua estranha de novo, lembra? Ela é pequena e tortuosa, ela não tem final. Ela descamba...

Num minuto eu olho pra trás e estamos pertos de casa, estamos na esquina. Eu me volto para você, a rua estranha diante de nossos pés novamente. Estamos abraçados juntos àquela velha cerca de madeira, as fazendas, as plantações e a Lua, longínquos, mas ao alcance dos olhos, ao alcance de nós. Estávamos fantasiando?

Debaixo da sola dos meus sapatos há um visgo de tudo o que nos trouxe até aqui. Um pedido, uma noite, uma promessa, o amor.

De repente eu me encontro aqui no meio dessa cidade desconhecida, devo ter saído do rumo com os olhos vendados. As praças estão vazias, como nas manhãs de domingo. Há uma melodia distante que me repuxa, estou me locomovendo involuntariamente sobre esses pisos irregulares. Os carros estão lentos e acinzentados, as pessoas com suas faces cobertas, essa downtown fantasmagórica.

Estamos juntos, juntos e distantes demais, eu não consigo percorrer esses curtos passos que nos levam de volta. Minhas mãos em sua cintura e contemplamos atemporalmente o horizonte preguiçoso. O som distante me traz a outras memórias, o som de outras épocas me dessintoniza, e uma fagulha elétrica me arrepia a espinha. Eles estão nos chamando...


18 de dezembro de 2010

Língua, lóbulo, pescoço. Amor.

Escorre pelas pontas dos meus cílios o vapor do amor, me pertence todo esse corpo. Seu. O jogo está mais apavorante, eu estou no time da boa vantagem, o adversário me adora e há banquetes e flores em meus pés. Com sua língua meu corpo se faz vigoroso, mais água cai sobre as palmas das minhas mãos, estamos vermelho-azulados. Brilham na escuridão os olhos nossos, verdes, brancos, amarelos de suspeitos incensos. Me aperta e me enlaça com força, estou jogado sobre a face macia do seu bem querer. Me engole, me despe, e estou pendurado no gancho. À alta temperatura do forno, a vítima que espera o abate. Eu.





8 de dezembro de 2010

"Uma barata escura vagueia...

... no porão, e ao mesmo tempo há um rato roendo os fios da lavadeira. Meu dedo te conduz, e o teu acende a vela. Contudo, o mundo mantém seu giro e eu acordarei todos os dias pela manhã. Amém.”

Os olhos não conseguem se manter na órbita, a mente não consegue se manter nos olhos. Tudo o que você vê, tudo isso não é você. Seus sonhos são destruídos, seus amores, traições. Deram um tapa em seu riso. Os papéis te dizem que és grandioso, mas seus pés não conseguem ler as linhas. E se algum dia alguém lhe perguntar o que foi feito dos cordões, não saberá como esconder a mentira.

Você está morto. Então, você está morto? Afiou a lâmina, fez o corte, rodopiou até se tornar são novamente. Você me deixou em um corredor muito longo para que eu consiga enxergar a porta. E agora que descobriu que todo o quarto não se pode percorrer, prefere ficar enrolado nos lençóis deitados na cama.

Afinal, o que são os faróis? O que eles apontam na direção de meus olhos cansados? Não estão me ajudando a enxergar, estão embaralhando minhas ideias da estrada. Aonde foi parar o caminho? As faixas brancas da pista se enrolaram meu pulso e eu tenho os movimentos contidos. Como as órbitas dos olhos, estão desfocadas minhas intuições. Não sei o que fazer com você.

Eu bebo a água, mas todos os dias trazem-na novamente. É como o girar dos ponteiros do relógio, mas estão atrasados. Não se encontram, estão sempre distantes, e a hora não passa. Essa pontualidade impontual adoece minha percepção. Aguçada e febril, debilitada e úmida, encharcada de sangue, aponta-me o dedo. Então, estou morto? Eu não me lembro de quando atravessei a porta, devia haver um porteiro.

Quem me permitiu passar para o outro lado da sala, foi o mesmo que me deteve nas eras passadas? E se eu continuei a persistir no mesmo erro, foi agora que encontrei minha punição? Meus olhos orbitam algo que minha percepção, a aguçada, não abarca. O que vejo não é o que existe. O que existe, vejo?


Passei por todas as fechaduras, destranquei todas as portas. Eu engoli as chaves, eu cravei a pimenta, eu pensei. Eu enxerguei o que todos não viam, eu percebi a dimensão das lâmpadas, eu enrolei as faixas, eu brinquei com a lâmina. Eu te fiz de cozinha, eu quis cair na piada, eu te chamei de mãe. Eu corri com os lençóis, eu te abracei. Eu girei nas hélices, eu voei. Eu provei da dor, eu a transformei em prazer. Eu desiludi o amor, eu me permiti poderoso. Mas, ainda e apesar de tudo, não compreendo nada.

6 de dezembro de 2010

Uma flor em minha noite

Não é pra celebrar a noite, mas eu prefiro que o desgosto aqui pingue, não vamos desperdiçar palavras entaladas na garganta. Não é minha cena de despejo predileta, eu poderia ter sido jogado de um ônibus em movimento. Não é o momento de celebrar as alegrias do mundo, mas o que fazer, não é pra ela perceber que meus punhos estão cerrados...

Se o sexo com o outro é melhor, e se minhas manias a agoniaram... Se meu olhar penetrante a assustava demais, se minhas velas negras brilharam mais que os seus olhos poderiam suportar... É, não é minha cena de despejo sonhada, eu poderia ter sido decepado durante um passeio na escada rolante.

Se a fumaça do cigarro lhe entrou pelo pulmão ou a fez lacrimejar, o que farei eu senão cruzar os braços e esperar. Tomei um banho de café quente, estou moreno e saboroso. Mas se meus beijos não conseguiram a segurar, e se minha mordida era fraca demais para sua libido poderosa, o que eu poderei chorar nessa noite desgostosa?

Pisou em minha dignidade, praguejou meu nome no meio do salão, cuspiu sobre mim na frente de nossos amigos. Era mesmo eu ou devia ser ela a sair? Se não lhe importa os cartões de amor deixados na porta da geladeira, se minhas mãos eram frias ou pequenas demais, como poderei me desesperar?

Se eu saí escorraçado, se meu rabo está entre as pernas, será que eu devia chorar ou xingá-los ao me pedirem pra sorrir? “Você sabe, essas coisas acontecem, era melhor isso do que os chifres chegarem a apontar entre os fios de cabelo.”

Será que ele a colocará sobre a pedra da cozinha com mais delicadeza, será que ele irá lambê-la em todos os sentidos em que eu fazia? Será que ela vai apertar o lençol com as unhas e rasgar suas costas também? Não, não é pra celebrar essa noite, mas eu prefiro cantar o desgosto e bailar entre as gotas de chuva com as luzes desses postes solitários. Minha música é melhor, minha música é melhor...