3 de dezembro de 2013

Sobre a garganta e adjacências

"Quem ouviu o último tiro?
O último grito
O último olhar perdido
O último sorriso desencontrado
Quem escolheu o último acusado?"


Estralo os dedos porque quero, e me embaso de ocorrências fúteis nas últimas negociações. Tenho um gosto tão podre como o dedo e não me esforço para deixá-lo transparecer. Há uma pedra entalada na garganta e empurro com o dedo, forçando-a para baixo com cerveja e outras coisas amargas. Nada de doçuras por hoje.

A falta de talento me inebria, a falta de tato me enoja, e poucas coisas me constroem. Chega de dedos por hoje. Chega de doçuras, de melaços e de rebolados. Esse desespero desencontrado com meu estado pacífico de espírito bate na face como um tapa de pura sacanagem. Coisa baixa, de linha perversa. Somos todos bons animais, adestrados para sugar o melhor. Nada de doçuras por hoje.

Não preciso de um amor, mas de um admirador. Não quero compaixão, quero plateia. E que saiba aplaudir, que saiba bajular. Pago, se for preciso. Não gosto de observar que estou sendo observado. Mas gosto que me observem. Enquanto desfila o corpo pululante entre as folhas secas, sem graça bem como sem graciosidade, enquanto saltita as calçadas, quero holofotes virados para mim.

Não me importo de ser asqueroso. O asco me comove, e como pedra, me deixo rolar e encardir. Faz parte do meu cotidiano. Não me importa espantar, e continua sendo uma jogada divertida, deixar bocas abertas pela passagem do movimento deselegante. Despojado e despido. Mas carrega-se em punho a fumaça, guardiã fiel de todas as impunidades.

Há um escarro cremoso e sedoso preso na garganta, e por querer retê-lo é que fecho a boca. Calado, armado e pronto para cuspir. Olhos faiscantes, parecem belos? É o olhar inquieto de um porco encurralado, que a tudo observa, e mais urra que pensa. Se o olhar reconhece o perigo, o coração se acende e apaga, como um curto-circuito, é falha, é frio, é bonito de se ver. Mãos frias, coração quente, e é por isso que meu tato é fumegante, surpreendente. Há alguma coisa de negação que, no entanto, é uma súplica bem disfarçada.

Quem ouviu o último olhar perdido, o último sorriso desencontrado? Sem destinatário, é jogado a esmo, esforçoso por parecer natural e não planejado, pois tem-se medo da vergonha de ser jogado ao vácuo. Amarelo o sorriso, branca a alma, rugosa a região dos olhos. Dedos finos cor de carne desejosos de percorrer algum corpo jovial qualquer, repugnantes ao primeiro contato, amedrontadores ao segundo. Nada de dedos por hoje. O pior não será o asco enquanto para além dele houver a invisibilidade.


Tantas ocorrências fúteis e esse esforço por parecer desesperado com a surpresa banal. A preocupação dos outros em se padronizar e conferir valor a detalhes me faz cuspir aquele escarro sem nem mesmo planejar fazê-lo. Chega de doçuras por hoje.



2 de novembro de 2013

O Rei, destronado

Mas de repente uma névoa de umidade e tristeza moveu-me céus e terras, abriu brechas largas no meu coração pequeno, este betume. Os olhos molhados, o olhar cansado, a visão turva. E via turmas e grandes corjas movimentando-se para cima, movimentando-se para baixo, num passeio de vai e vem, risadas, lágrimas, braços dados, pernas jogadas.

Tenho cadeiras de madeiras que não falam e um jogo de talheres que não são de prata. Mas me pouparão da solidão quando o último tiver se levantado da minha cama dura, esta que não consegue reter ninguém por mais de alguns minutos. E uma névoa me cobriu os olhos por alguns instantes, e nem muitas toalhas de muitas lojas de departamentos os conseguiriam desanuviar.

Garrafas na mesa fazem parte de uma decoração antiquada, onde tudo já está posto onde está e as paredes gritam palavras de conformação. De repente a casa fica apertada, de repente as paredes se distanciam e o cômodo fica grande. Cortinas retorcidas pelo vento, este vento, esta tormenta que vibra as janelas e levanta os tapetes. Tapetes voadores pela casa, panos estalando no varal, chicoteiam o ar e a mim.

Contudo tenho chaves e outros cigarros que me pouparão do desfecho triste quando o último tiver voltado a si e, numa repulsa automática depois do prazer barato, levantar-se e dirigir-se à porta num só golpe. E a porta, misericordiosa, mantém-se aberta à espera de alguma brisa que queira varrer da casa o cheiro de glória murcha.


Algumas filosofias baratas, aparentemente ridículas, e os cigarros permanecem.



6 de outubro de 2013

Declaração súbita de amor


Inebriado, circundado de calor, fumaça e gatos, olhos por todos os lados, observando ao léu, observando tudo menos eu, dissaboroso, sentado, circundado de calor, fumaça e gatos. Sentado assim, escrevo. Escrevo não sei para quem, essa declaração de amor descuidado. Perdido, desolado, sentado. Olhos no papel, ouvidos atentos a uma música que toca longe, em alguma festa num vilarejo no interior, fora de meu alcance. Tão longe do meu alcance está o personagem detentor do meu coração, para quem escrevo este bilhete mal redigido. Mas a paixão é tanta que não me permite virgular bem, ou, se virgulo, não me permite inserir parágrafos ou separadores discernitivos. Escrevo, eu sei bem, mas perdido neste colchão em que me afundo, só sei da fumaça que ronda meu coração, esta brasa acesa, chorosa. A música que toca distante vai se distanciando cada vez mais, distante, baixa, abaixando, distante, e em consonância vou perdendo a razão. Sobra apenas o coração.



29 de setembro de 2013

Mão ao ar

Inevitável acender um cigarro, e danem-se as disposições contrárias.


Não me importa se você não me olhar. Ainda assim continuarei passando. Deslizarei meus dedos por sua pele, espalharei pérolas pelo chão e beijar-te-ei os pés, numa adoração desmedida.

Quando recebi aquele bilhete, o guardei; sabia que poderia ser o último de uma vida inteira. Poderia ser o último trocar de olhares com outra pessoa humana, com outro animal que materializasse sentimentos em um beijo. Não, não são todos os que sabem beijar. Nem todos transcendem pelas vísceras as emoções e falam até mesmo por um aperto de mãos. Ah, sou um espírito tão solitário.

Quando olhei pela última vez, vi um homem parado à porta do shopping daquela avenida. Eram dez da noite, e era domingo. Carregava um embrulho numa das mãos, ração para gato, e a outra a tinha solta no ar. Inconscientemente, quem sabe, não procurava uma outra mão à qual pudesse entrelaçar os dedos? O quão inocente podia ser, o quão solitário não o era? Fez-me pensar, parar, hesitar.

Quem acompanharia o estranho para casa, senão sua sombra, fraca pelas luzes débeis dos postes? Quem o esperaria em casa, além do bichano? Da próxima vez que tiver vontade de gritar, gritarei. Quando me acometer vontade de agarrar-te, dar-te-ei uma rasteira e seu corpo premirei com toda a força de uma alma desesperada pela vida.

Acendo outro cigarro, e danem-se as disposições contrárias, porque se eu não for viver para meu prazer, que me adianta seguir a cartilha de bons modos?

Ah, eu tenho saudade de tanta gente, oh, Pai! E tenho saudade da gente que nem conheci ainda, como é possível? Expilo pelo universo energias de amor, explosões que acometem meu espírito noturno. Talvez um dia haja resposta, e me batam na porta, encontrem-me no supermercado. Quantas surpresas o jogo da existência não reserva entre um minuto e outro, entre uma prateleira e outra?


E, enquanto entrava a madrugada, o homem, sentado em sua poltrona acolchoada, envolto de carpetes e móveis de madeira escura e maciça, tinha em seu colo um felino de olhos verdes, quase bioluminescentes. Uma das mãos, apenas uma, apoiada sobre o colo. E assim adormeceu.

9 de setembro de 2013

Capítulo 21-24: do amor que não se esgota

Esta é uma declaração de amor que envolve cigarros, escuridão, ar fresco, folhagens molhadas e, quem sabe, uma correspondência, embora eu não acredite nela.

Como não te vou entregar pessoalmente isto, é capaz que nunca você a veja. Como não vou bradá-la por praças e em saraus literários (ai!, pretensão minha, ai!), é capaz que dela você jamais tome conhecimento. Não me importo. Joguei pelo universo as sementes deste amor tão profundo e tão impossível, espalhei energias pelos quatro cantos, sou a irradiação do amor.

Como não te vou ver dormir, como não te vou tocar a face enquanto ressona, provavelmente você não poderá sentir o carinho imenso que tenho aqui, guardado em mim. Este carinho que floresce a cada dia porque dele cuido muito bem, e que jamais fermenta porque entre nós não há um risco sequer de desentendimentos. Esta compaixão que, eu sei, é mútua, ainda que eu não possa dela provar agora. Não me importo.

Como não estou presente em suas realizações mais recentes, não te posso abrir um sorriso e esperar que venha tudo ao meu ouvido, e nem te posso contemplar a face rosada enquanto conta, com empolgação, suas descobertas e seus êxitos. Mas deles sei, deles todos, porque entre mim e ti há uma conexão cósmica, uma força poderosa e que, sendo universal, não é impedida pela distância, seja ela física ou de pensamentos. E sei que, ainda que eu não pense em ti todos os dias, sua imagem não se distancia de meu Eu. E nem se distancia do seu a minha. Eu sei disso, e por isso não me importo.

Como em seus acordares diários, às vezes difíceis, às vezes esplêndidos, não te estou acompanhando, não posso provar do beijo seu, que tem sabor de mel e é forte como conhaque. Mas embora eu esteja longe da sua companhia agora, eu guardo no meu íntimo este sabor adocicado do amor que já tive e ainda tenho de ti. E por isso não me importo. Eu tenho em mim o melhor de ti, e como um bom amante e o apaixonado incorrigível que sou, você sabe, jamais deixo que seja subjugada essa lembrança.

Como na alta madrugada não te posso visitar, subindo sorrateiramente as escadas do apartamento seu, acabo por fumar sozinho o último cigarro da noite ao invés de trocar com você suspiros eclipsados por luz e fumaça. E não te posso, portanto, fazer comparações com as coisas que vivi e as que viveremos ainda. Mas não me importo, com tudo isso e apesar de tudo, não me importo. Porque ainda que eu não seja, por nem um dia sequer, correspondido, vivo este amor em mim. Este amor que é maior que os troncos das árvores em que já escoramos as costas em outras tardes, que é mais gostoso que as risadas que já demos ao telefone. E, quem sabe, as forças cósmicas não te trarão um dia à minha porta, num belo sábado de manhã?



7 de setembro de 2013

Linhas escritas, porque muito ficou a ser dito, e a quem gostaríamos, não falaremos

É dura a dor da dor.

É duro a saudade, são doloridas as lembranças que não podem ser mais revividas. É difícil quando se instala permanentemente a ideia que não se poderá mais contatar o ausente, que ficaram palavras e frases inteiras por serem ditas. E não serão.

É difícil pisar novamente o mesmo chão, levantar a poeira e olhar pela janela. Porque o término de uma era carregou recordações inteiras e nas promessas de serenidade e paz que beirasse o absoluto eu já não acredito mais, já não as vivo mais. Em minha cabeça, desespero. Porque em tudo que vejo agora há decadência.

É dura a dor da dor.

É duro da voz ter somente a memória, não poder mais ouvir as histórias nem acompanhar os passos. É duro ver uma construção se desmoronando. É duro não poder mostrar vitória a quem muito a esperava. É duro não precisar mais se empenhar para fazer os cafés levemente amargos. É dura a dor da dor.



A José Gomes de Paula *1936  †2013



28 de julho de 2013

O Dragão de Fogo



O dragão se levanta, é noite ainda. O dragão se alimenta, se espelha, alicia a si e aos que o envolvem, o dragão se protege. O dragão se levanta, é noite ainda, e com ele, ao seu bater de asas, apontará no horizonte o primeiro levante da linha primária de raios de Sol a iluminarem a Terra neste dia. Estrondoso.

O dragão se levanta, é noite ainda, todos dormem. O orvalho amorteceu por quase doze horas as folhagens, os corações, a promessa de paraíso. Todos estão úmidos, mortalhas envoltas em trevas, húmus, folhagens, terra fria. E eis que se levanta o dragão. Bradam e estremecem nos menores refúgios de sombra todos os espíritos assombrados. Eis que se levanta, ele.

(Os olhares desencontrados, chorosos, e os homens que vagam olhando pelos retrovisores da vida. O cigarro deixado aceso, a fumaça espessa presa em olhos marejados, a viscosidade aveludada presa em membros entumecidos. Tudo o que era pra estar e acontecer mas, por um minuto, recuou-se. O dedo em riste, o trovão, a sentença, o brado, os olhares fulminantes. Mas, reparando bem, estávamos todos parados, congelados. Era a membrana, voluptuosa, singela, galante, do bem estar. Era esta parede, este invólucro de bons costumes, esta cadeira confortável que mantém-nos as pernas a balançar, envoltas em tiras de cetim. Quando menos esperar, a vida, esta que deixamos passar, pega-nos. E aí será tarde.)

O dragão se levanta, é noite ainda. Ele respira, exala, observa, assustado, o próprio acordar. Ele, que é o amanhecer e o florescer, e outros verbos, ainda, encarnados em si, sem que o saiba. O dragão se levanta, é noite ainda, e olha-se com olhares de quem se ama, mas é contido. De quem se admira, mas é tímido. Para si é um mistério maior que a vida, embora a vida seja, tanto quanto, tudo o que é contido em si. Sem que, entretanto, saibamos. Sem que ele desconfie. E eis que, sob o som dos aplausos de todos os seres, virando-se em toda sua imensidão, levanta-se, ele.

O dragão se levanta, e com ele acordam as esperanças e a ventania. Ele olha, penetrante. É um mago metido em vestimentas de sacerdote. E, ao rufar dos tambores mais distantes das entranhas do planeta, agita suas asas, e com este alarme chegam os raios de sol, o canto dos pássaros e a brisa matinal, que varre o mundo e tem o aroma do café. O dragão se levanta e com ele a manhã, que é ele próprio. Estrondoso.


9 de julho de 2013

Carta de Marília a Augusto


“Só me sinto querendo ir pra casa, deixar cair lágrimas no caminho e panos no chão. Os panos serão brancos mas irão se embarrear de tragédia e estupidez. Só me sinto querendo me desvencilhar de todas as mãos e ir pra casa.”




Local desconhecido, 09 de julho de 2013


Para Augusto,
Senhor da minha espera


Quando eu estava em paz, você apareceu a mim e nada representou além de um convite um sorriso tímido. Mas tola, eu, que caí envolta nesta timidez sua, e foi, você, deixando-me envolver, envolver por quem?, envolver pelo quê?, até estar quase completamente embaraçada por fios que eu mesmo teci e com os quais me sufoquei. Porque eu estava em paz e você me removeu dela, porque minhas noites eram solitárias e você as preencheu com expectativas, expectativas cujas ações comprei e me tornei sócia, sem saber, contudo, que se tratava de uma empresa fantasma. Porque eu estava só e minha solidão me é minha melhor companhia, mas você apareceu e, como sempre, acreditei que alguém pode ser melhor que estar só.

Você acontece, eu me solidifico. Você permanece, eu me esvaio, navego obscuramente sobre as águas sob forma de névoa. Você se reforma, eu sou amorfa. E eu gosto de ser amorfa, mas talvez seja o mal de quem é amorfo: tão logo encontra um recipiente para se depositar e tomar a forma do depositário, não hesita em fazê-lo. Foi o que me causou, você: me mostrou o frasco mas tapou-o antes que eu pudesse ali me ter, e virei sopro que ronda a esmo.

E se você me chamar de novo, direi: estou descabelada, mergulhada na lama, agora. Não posso ir.

Você não é ardiloso, contudo. Nem eu e nem você jamais nos oferecemos compromisso, embora, tacitamente, alguma coisa pudesse haver ali. Naqueles tapetes felpudos, enquanto mãos se entrelaçam, o pensamento viaja e eu encontrei algum tipo de sobriedade que me fez sentir bem. É assim com a companhia sua: faz-me bem, ela, logo, dela sinto falta. Automático e pragmático. Mas não consigo compreender-lhe e acabo o enxergando, hoje, como uma fechadura enferrujada, cuja chave já foi perdida há muito tempo. A bem da verdade, a chave está em algum lugar que até mesmo você sabe, mas não tem, você, vontade de se mover um passo que seja em direção a ela. E por isso permanece trancado, enferrujado, mesmo que tal ferrugem tenha aparência de sorrisos e meiguice, ah, essa meiguice sua que me tira o sono compulsivamente.

Estou pulguenta e sedenta agora. Tenho os braços arranhados e o rosto inchado. Não posso ir, ainda que me chamasse de novo.

Ah, se eu lhe pudesse ter enfiado a faca naquela ocasião, teria-a torcido e repuxado, bem a meu gosto. Teria preocupado-me comigo e meu prazer, e fazê-lo sentir cada puxada, cada fisgada. E ninguém teria o porquê de me cobrar depois. Mas sou boa demais para tal, e não consigo compreender-lhe os instintos masoquistas, tampouco conseguir-lhe-ia obrigar a algo. Como iria saber que era esse o desejo seu? Minha essência, esta, preservada tal como está agora, não foi o que lhe atraiu primeiramente? Não percebeu, você, que nada tenho de demoníaca? Deveria me sentir culpada por não ter?

Estou molhada agora. Estou suja e sedenta. Estou emputecida agora, meu rosto pende no escuro, pêndulo sou, e minhas risadas descabidas ecoam no universo. Meu sorriso ilumina todos os caminhos por onde você provavelmente anda agora. Sou um suvenir bem detalhado. Seu hiato me fez enlouquecer, caminho trançando as pernas agora e bebo leite no gargalo da caixinha. Não posso ir.

Setenta dias se passaram, esta tormenta permanece me consumindo como um oco. Mas oca não estou, pelo contrário, sou uma bucha velha e rasgada, absorvendo líquidos e sonhos à minha volta, esfregando chãos sujos à sua procura e deixando um rastro viscoso por onde passo. Não sei o que quero, e contigo não quero nada. Mas não deixo de ter suas fotos junto ao meu guarda-roupa e nem de perder alguns minutos da noite admirando-te o sorriso ingênuo. Este sorriso ingênuo de Augusto, perdido ou encontrado, mas Augusto somente. Sorrindo. Do outro lado, eu, sozinha. Eu, sozinha, sem Augusto.

E se você me convidasse agora, eu diria: estou vestida de ódio agora, não posso ir. Meus passos são pesados e magnetizarei tudo de você que se aproximar de mim. Estou em má hora, não sou boa companhia agora. Não posso ir.


Mas o jardim é florido e também tenho minhas deixas. Do meu alpendre, descalça, na ponta dos pés, tento me fixar na linha que o poente tece no horizonte. Passo um pente nos cabelos, uso vestido branco e rodo-o conforme o tempo balança. Sou simplesmente uma menina doce, com olhos em fúria. Da próxima vez que alguém me vier tirar da paz, é bom que tenha uma história de amor ou algo mais a oferecer em troca.




24 de junho de 2013

Augusto, Marília, ou apenas um deles, ou os dois ao mesmo tempo




“Não me declaro, mas não me contenho.”


Em noites quentes, abraços e ingredientes. Ele está lá, a vagar, ela considera, pensa, ela vê o que ele, distraído, apenas expira em forma de fumaça. Noite quente, tapetes e carícias. O sentimento velado é cuidadosamente acolhido, mas tudo pode desaparecer na manhã seguinte. Confortável amnésia? Não há lugar para re-sentimentos, tudo é tão puro que se passa como se não passasse, como se não existisse.

Augusto não cuida, Augusto acontece apenas. Como deve ser, ele diz, quando é natural. Marília repreende a si, não é calculista mas é como se fosse. Marília estuda, Marília teme, quase sofre, mas de repente estala e percebe que é exagero demais. Um balé descompassado, uma dança em salas escuras, mas os passos estão se encaixando, estranho, os passos não saem em falso. É melhor que o concerto não pare, pensa um deles – ou quem sabe ambos?

Esta casa está cheia de sal. Sal, sal, salve! Sala, quartos, banheiro, ela está cheia de si, ele é a própria beleza da juventude, salve! Esta casa está cheia de sal.

Se Marília definisse sua angústia em uma palavra, esta seria 'hiato'. Ela não fala por ele, mas com cigarro entre os dedos, reflete, conspira, repreende-se, quase se reprime, mas não, Que exagero!, brada em silêncio. Mas Augusto não percebe que há hiato, pensa ela por ele, porque sua vida é fluida e a barca rema em águas coloridas. O colorido é questão de ponto de vista, e Marília enxerga a vida por meio de óculos em preto e branco, que ela teima em chamar de maturidade, mas talvez seja isso apenas uma forma engessada de viver. Liberte-se, ela diz pra si. Augusto em silêncio. Mas e sobre o hiato?

Conforme passavam os dias, o hiato a fazia se sentir desmerecida por um sentimento que nem mesmo sabia afirmar se cultivava. Ela, que era ele também, e conservava uma postura serena e comedida, mesmo que um pouco ali fosse por esforço. E ele? Ele, que talvez não percebesse nada daquilo, pois vivia apenas, com toda a beleza de viver, e sem se atentar para as dimensões subterrâneas dos atos. Ou, se percebia, era um ótimo fingidor. Mas dela havia ele bebido um pouco e, da mesma forma, havia agora um 'algo' se insinuando por ali. Podia ser bom, podia não ser. Mas existia.

Em Marília, que também era Augusto, havia uma esperança que brotava cuidadosa, Esperança do quê?, ela se perguntava, enquanto regava a esperança e podava a angústia até quase reduzi-la a um talo. Não podia arrancá-la porque ambas compartilhavam a mesma raiz, e executar a angústia significava destruir para sempre qualquer esperança. Ela se sentava e desenhava em círculos, batia à máquina sem vontade, desconfiava de quase tudo, menos de seus passos largos: e em Augusto, que era Marília um pouco, talvez menos que ela o era, brotava o quê?

Difícil era largar-se ao tempo para tentar encontrar respostas para o que muito dificilmente seria perguntado. O balé era dançado em tempos diferentes, e o estranho disso tudo era como os passos, até então, eram dados no momento certo. E o medo de pisar um pé, de ir rápido demais ou cair na letargia e perder o movimento? Mas, claro, tudo isso podia ser uma tremenda duma besteira. O que começou de olhos vendados não precisa temer a falta de direção, pensava um deles. Quem?

E, claro, talvez Augusto nem existisse, aquele Augusto não. Só na cabeça de Marília. E, quem saberá?, Marília não passasse de uma fantasia delineada de Augusto, e que apenas de tempos em tempos fosse trazida à vida. E numa quarta-feira qualquer, quem ontem era Augusto amanhã seria Marília, e quem ia perceber?

A casa está cheia de sal. Sal, sal, salve! A beleza do acontecimento é que, de tão singelo, ele nem parece existir. Mas existe.






5 de junho de 2013

Contato




Meus sentimentos em aberto. Minhas emoções, pulsos eletromagnéticos que viajam galáxias. Percorrem o tempo. Minhas ideias me fecham, o coração explode, o peito se abre novamente. Revoluções por sensação, sentimento saciado, é vida, é vida, isto.

Meus sentimentos, sóis em combustão, iluminam meus próprios olhos, minha face clareada como que por uma fresta de luz, e um sorriso. O sorriso ninguém vê, guardo-o pra mim, mas os olhos abertos também sorriem e denotam o que ocorre logo abaixo. Doce música transcendental, percorre o oco do espaço, que alguns dizem ser matéria escura, outros o vazio imensurável de uma alma cujas esperanças foram perdidas. Mas eu sei, é vida, isto.

De um ponto a outro, traçados a esmo, a mesma solidariedade, a mesma bondade. Sentimentos em aberto, estes meus, conectam minha vida a pessoas que nunca vi com os tais olhos sorridentes, mas as sinto e elas vem, de outros cantos, de outras partes, de braços abertos a me apertar, e nesta fusão os corpos não importam mais, nem a distância, são sentimentos, sentimentos em aberto que ultrapassam a barreira entre planetas, que circulam energia por anos-luz e quantos mais. É energia pura, é vida, isto.

Sentimentos em aberto, trazem laços pré-escritos, completam e contemplam a completude, milagre primordial da vida, o encontro de mãos e a correspondência de sorrisos. Quantas pessoas no mundo e quantos mundos por descobrir, quantas radiações de amor chegarão até nós um dia nesta vida, e em outras, de lugares que jamais pensamos em conhecer? Sentimentos em aberto que jamais encontrarão o fim: o coração explode, o peito se abre novamente, revoluções a cada sensação.

Viva!


24 de maio de 2013

Quando chegar o fim


“Estou possesso. Não estou irritado, nem furioso. Estou possesso.”


Quando chegar o fim, quando chegar o dia do a deus, onde estaremos sentados? Quem virá ao meu auxílio, quem virá pedir meu abraço? A quem irei direcionar olhares desorientados que clamam por socorro? Fará sentido desesperar-se sozinho? Fará sentido não estar completamente entregue à solidão? Afinal, por que definições? Haveria meio de definir este cansaço mental, essa mão levantada por cima do lodo pantanoso? Quem está lá fora?

A cena é escura, a cena é profunda. Tudo será eco, mas não se pode precisar onde está a fonte. Por onde gritam, e por quê? Não fará mais sentido a gramática, nem meus papeis pendurados na parede, cuidadosamente emoldurados e improfanáveis até então. Mas tudo é profano, este solo é manchado de sangue. Quem não é? Vertigem, vertigem. Estarão todos em queda livre, mas quando é o fundo do poço? Qual o maior castigo para a mente infinitamente criativa? Pesadelos, o que são? Ruídos, ecos, ouvidos em explosão. O fim estará próximo, realmente?

Estaremos todos à deriva, esperando por um contato. As estátuas se movem, são bocas de pedra a palpitarem, mas o que dizem? As maiores se movem pelo pasto verde, tudo pode ser verde no fim, mesmo que a sequidão tome conta de nós por inteiro. Nenhuma lágrima escorrerá, a boca seca, a saliva encruada na língua, gosma. Quem pode se dar conta do fim quando o encara pela face?

De seus olhos saltam muitas cores, flashes pulsantes, é como o coração. Sangue pelo corpo, cores pelas mãos. Peles multicoloridas, estamos verdes, brancos, amarelos, verdes novamente. Quando o fim chegar, e se você estiver em sua sala, observando tudo pela tevê? Vejo muitas luzes, ele diz, mas não encontro resposta. Vejo muita claridade, mas o interruptor foi absorvido pela parede. E agora? A cena é escura, mas o que responder se a escuridão for, paradoxalmente, luzes derretidas escorrendo por suas paredes, tragando árvores, parque e gramas?

Quando o fim chegar, quem se levantará para acudir? Para onde correrão os bons, ou tais não passam de lendas que contamos, dia após dia, para podermos colocar a cabeça no travesseiro e conseguir ressonar? Você está numa cidade deserta, e o dia é muito claro. A luz te queima, penetra pelas pálpebras, mas o sol não está lá. Tudo é branco acima, e abaixo as pedras ardem. É um dia agradável apesar de tudo. Mas onde estarão todos? Você está numa praça deserta, há poucas árvores e um chafariz morto. Dentro, apenas folhas secas e luz. Olha para os lados, mas ninguém vem. E quando o fim chegar, quem sabe se ele não será uma completa clausura involuntária? Como anunciar que tudo está se acabando se não há quem possa ouvir? Talvez, por fim, você se resigna e senta no banco. E lá irá permanecer, solitário, à espera de um transeunte. E passarão séculos. E mais quantos outros séculos passarão até que possa perceber que essa é, em verdade, sua danação.

Quando o fim chegar, poderá tudo escurecer-se, e haverá outras cores, cintilantes. Tudo cintila, num universo de dimensões e propósitos sempre discretos demais. Quando enlouquecer, quando deitar-se ao chão e cravar as unhas na terra, quem saberá? A cena é profunda, mas a luz é alva. Há gritos no céu, mas são sons sem boca. Há uma alvura angelical, mas te queima e tudo é escuro ainda.

Estamos todos à deriva, ávidos pelo contato.



9 de maio de 2013

O espelho (ou Dia de redenção)



I

Começou cedo o dia, com um bandolim tocando à porta, mas ninguém queria entrar, não. Era um desses viajantes aí, que vivem a vida como se amanhã fosse a morte. Desses aí, que festejam sem esperar que a alegria seja recompensada. Porque tem gente que é assim, né? A alegria se estampa no rosto, mas não é ela de verdade ali. É um disfarce, inconsciente, talvez, como que se o seu uso fosse atrair alguma felicidade mais... sólida. Deixemos os fingidores de lado. E os festejadores também. Em resumo, o dia começou com um bandolim tocando à porta, freneticamente, mas logo sumiu, foi seguir o caminho.

Depois, o cheiro do café. Não vinha dali, daquela cozinha, visto que, além do vivente que agora acordava, ninguém mais habitava a casa. Vinha doutras cozinhas, talvez um apartamento, da sala de espera do consultório odontológico duas casas ao lado. Da sua cozinha, não. Uma vez desperto, contudo, tratou ele também de fazer o seu próprio. Coçava a barba, o cabelo espetado, desesperançoso de um corte ou um pente que fosse, o rosto ainda abobado de sono. E o café coando.

O sol atravessava ardente as janelas da cozinha e da copa, mesmo que fossem ainda oito da manhã. Oito da manhã, oito da manhã. Em tempos não muito distantes, já estaria na lida a estas horas, conversando, trabalhando, fazendo valer a manhã. Mas não agora. Agora, pelo contrário, oito da manhã era cedo demasiado. E era estranho que o sol estivesse tão forte tão cedo. O contraste da luz com a fumaça do cigarro recém aceso tornava a imagem do cômodo densa, espessa. Dormia de blusa de frio, naquele tempo de início de inverno. O frio lhe castigava tudo, inclusive os pés. Blusa de frio e cuecas, era tudo o que costumava vestir durante as noites. Largou o cigarro no cinzeiro pra poder lavar uma xícara.

O tempo pode mudar tudo, ainda que nem mesmo um metro seja percorrido. O tempo mudara muitas coisas. Do fundo do sofá recoberto de colchas, colocadas ali mais para disfarçar o envelhecimento do móvel que pra qualquer outra coisa, ele dobrava compulsivamente as pontas das mangas da blusa azul-marinho-gasto, isso que era uma mania recém-adquirida. O ócio nos faz adquirir manias. E medos. Quando não ocupava os dedos com este artesanato infrutífero, ocupava-os na boca, a cortar as cutículas com os dentes, ou com o segurar do cigarro, da alça da xícara. Ali, no sofá, de pernas cruzadas e olhar abstraído, ainda conseguia se sentir um deus. Meio decaído, mas um deus.

Não era o fracasso que lhe preocupava. Talvez fosse, talvez, mas não dentro do que ele percebia como seu mundo de agora. Não era fracasso o nome daquilo. Era um êxtase infindável, mas que de interminável tornou-se cíclico. Como as lágrimas, como o olhar que vagueava em busca de sentidos. Sentidos. Não se tratava de morte, nem de sensações físicas. Se era morte era antes um falecimento do espírito. Sentidos. Olhar lânguido, quase bêbado. Fumaça, odores, panos velhos, sentidos. Cíclico.

O tempo se tornava cada vez mais abstrato. Podia ser medido em relógios, e havia muitos em paredes variadas, alguns fora do horário, alguns sem pilha. Podia ser medido pelas folhas do calendário da padaria, distribuído como brinde todos os finais e inícios de ano. Mas eram todas medições abstratas. Porque só se mede a passagem do tempo em situações concretizadas. Mede-se pela intensidade imprimida na vida. Não, não se conta o tempo em dias ou anos, mas em vitórias, em eras de bonança e, inevitavelmente, em períodos de desgraça. O tempo se tornava abstrato para o vivente daquela casa. E, no mais, a única coisa que lhe sobrava fazer era literatura barata.


II

Depois da tormenta, o céu limpo não veio. Foi-se-lhe a mãe, o emprego e, com este último, a promessa de uma carreira mais sólida, que parecia já conquistada e se desfez em pó. Estava perdido como cão sem dono, e o dinheiro escasseava. Ele estava preso ao passado, preso àquela casa vazia, que, com ele ali, com este novo ele, era mais vazia que se desabitada fosse. Foi tormenta caída duma só vez, e a ventania dolorosa o dobrou. Agora, mais que o dinheiro, que os laços parentais, que a rotina do trabalho levado por mais de nove anos, por pouco dez, fora-lhe embora o sentido. E com o sentido, o sono, o senso de tempo, os motivos para pensar as oito horas da manhã como meia-idade da manhã. Esvaiu-se tudo. Tinha manias agora, manias e literatura barata.

- Quem sou eu!?, bradou numa noite, desesperado, com os cabelos alvoroçados, olhos em fúria, olhando pela janela. Ele, que se perdera onde dificilmente alguém poderia o encontrar. Perdera-se em si. Apontava os braços para cima, como que se esperasse alguém para levá-lo, para mostrar algo. Ele perdera-se por completo. A dor do outro é sempre alguma coisa distante, é sempre alguma coisa sintética para nós. A depressão é como uma porta. Desavisado, invariavelmente se caminha em direção a ela. Não é convidativa, não é esclarecedora. Mas há algo de involuntário ali. A porta estabelece-se diante de ti e, duma ora para outra, é o único caminho possível.

- Quem sou eu!?, gritou novamente. Não estava mais na janela. Estava parado, sentado na beira da cama, cotovelos sobre os joelhos. Olhava conflitante o espelho, via seu próprio conflito naqueles olhos acastanhados, rebuscados, enervados.

- Quem és tu? Quem és tu, meu caro?, respondeu o espelho, falando pelo reflexo, e era como uma resposta que partia de seu interior. Ou não?

Aquela resposta, em forma de pergunta, era retórica, no mínimo. Pois que o espelho o acompanhava há quase uma década, foi comprado com seu segundo salário quando assumira o cargo de editor. O espelho, indubitavelmente, sabia de tudo. Porque grande parte de sua vida, ou ao menos dos picos dela, passou-se naquele quarto. O espelho a tudo via. E, quem sabe, por que não?, a tudo ouvia também. Era, então, uma provocação? Era um auxílio?

- Fui eu quem falou isso?

- Depende. Olhe pra mim, o que tu vês? Tu? Eu?

O homem enxergava tudo aquilo desconfiado. Cruzou as pernas sobre a cama e firmou o olhar. O reflexo o acompanhava instantaneamente em todos os movimentos.

- Não me importa realmente se fui eu ou não. Não sei quem sou e pouco tem me importado lembrar que seja meu nome.

- Porque não é mais teu nome, decerto. Ou porque, talvez, tu já estejas deteriorado nesta casa e não passes de um fluido, de um vapor condenado a vagar. Tu, não sabendo mais da própria história, a mim desabilita, e nem sei mais se reflito alguma coisa.

- Ou se sou eu mesmo o próprio reflexo, perdido sem um referente a fazer menção.

- Olhe para esta merda de vida. Esta existência medíocre que tu lutas a todos os momentos para fazer continuar. Não tens mais sentido algum, vagas pela casa, mofo!, mofo és tu, agora.

E lágrimas caiam da face dele, ainda tentando não se abater.

- Chega! Chega! Não quero mais ouvir, não quero saber de nada. De nada!

- Mas se és tu quem fala, que posso fazer? Não percebeste que te acusas, a ti, a ti mesmo? Eu não falo, jamais falei-te uma palavra sequer. Tua mente fala, e tu escutas estas vozes porque estás perdido dentro de um calabouço. Tornaste-te um febril, não consegues mais desvencilhar-te das vozes que ecoam aí. Quem és tu, quem és? Responda-me, para que eu não pense que enlouqueci e estou falando com o vento.

- Por que me mutilas assim? Por que eu te ouço ainda, demônio? Por quê? Por que eu não arrebento essa casca, essa doença, por quê?

- Por quê?

- Porque eu não sei onde estou. Por que eu não sei onde estou?! Que foi feito de meus planos juvenis, que foi feito das minhas ideias?

- Tu as perdeste. Tu te esqueces de que o tempo não para jamais, é ele quem te engole, pouco a pouco tu sucumbes a ele. Perdeste teu tempo a procurar pelo futuro e o futuro não te chegará jamais. Ou podes ainda considerar que é este o teu futuro; é isto que tu sonhavas?

Ele torcia os dedos, estalava-os nervosamente, fumava, tossia, fumava, apertava as têmporas. Chorava como uma criança a quem lhe houvessem tomado o brinquedo.

- Como te foi levada a mãe? Como passaste os últimos anos com ela? E os amigos teus, homem? Foi por incompetência que perdeste o trabalho?

- Incompetência...

- Trabalhaste por uma década para aquela porra de jornal pra não conseguires um merecimento além da demissão? Que vida ingrata.

A demissão, a mãe, os esporros, as noites sem dormir, os desgastes amorosos pela falta de horário, a mesquinhez a que fora se acometendo, as unhas amareladas, o espírito amofinado que se sobressaíra após tantos anos e que o vencera, enfim. Era agora aquele ali, escritor frustrado, solitário de si mesmo. E a solidão é um monstro que nos abraça, sem que possamos tomar ciência. Tapa-nos os olhos até que nos acostumemos e, !, parece que foi sempre assim, não? Quem, afinal, reconhece-se em si, em si somente, longe de outros e de seu próprio reflexo? Quem sabe quem é sem necessitar de limites sociais, sem se medir pela ação do outro?

Não se sabe exatamente qual foi o destino do nosso homem. Há quem diga que ele tenha se matado, embora morto já estivesse. Outros, que ele se consumiu frente ao espelho, tornando-se indistinguível de seu reflexo. O certo é que jamais saiu daquela casa.




7 de maio de 2013

Não quero mais amores


(Dedicado a três amigos)


Não quero mais amores. Amores, seus lamentos, suas dores. A paixão arrebatadora, o início, o meio sôfrego, mole, morno, e o final libertador tanto quanto aterrador. Não os quero mais, nada. Não quero ter de pensar em ninguém, não quero andar em meios-fios de alguma coisa. Não quero mais nada. Não quero mais soluços, não quero lágrimas e nem promessas. Estas muito menos.

Não quero corpos. Minto. Quero-os. Um de cada vez, talvez até dois ou mais. Mas não os idealizo, não os quero esculpidos. Quero o corpo de qualquer um, quero uma carne qualquer, natural. Que ao menos este querer e o objeto querido sejam naturais. De resto, nada mais espero. Não quero esperanças de um amor, não quero idealizar cabanas conjugais em campos verdejantes. Talvez eu queira me esfolar no mato, chafurdar no lamaçal, sujar-me de sexo, sentir o odor nauseante de uma pós-noite. Mas é só.

Estou cheio. Cheio de rancores, de dores nos pés (ah, meu Deus, só pode ser o frio, o frio de junho!), cheio de mediocridade. Estou cheio de fumaça nos pulmões também, mas desta não reclamo, ainda que um dia possa ela me levar à tumba. Problema meu. E dela. Estou repleto, estou até a tampa. E o pior? O pior é que não consigo me despejar em lágrimas, este abarrotamento não se esvai pelos olhos, nem por possíveis gritos. A minha única esperança é escrever. Redigir, revisar, ler, apreciar, desgostar e, por fim, concordar. Isto, e só, distrai-me ou, de alguma forma, recompensa-me.

O tempo corre, ainda que não o possamos ver sempre. Um ano mais, novas rugas, menos fios de cabelo, promessas a serem pagas. Sabe o que diminui minha aflição? É pensar que este ano, talvez, terei modos de cumprir a metade das minhas [promessas]. Uma porção de amigos a visitar, de lugares a conhecer, de livros a serem lidos e resenhados, mentalmente ao menos. Tenho de seguir vibrante, cuspindo flores e semeando pelo caminho. Mas não é fácil. Ainda quero meus corpos. Mesmo tendo consciência de meu fracasso como objeto do desejo. Ainda assim.

Tenho frio e é péssimo tê-lo. Quero meu rio branco, além dos corpos e das flores e da Gal. Ainda que eu não possa tê-lo como morada. Que seja ele, então, meu amante apenas, e que eu possa visitá-lo esporadicamente, sorrateiramente, com a inocência pueril da infância. Quero também que chegue uma tal manhã, e esta eu sei bem defini-la, e que com ela eu tenha esperanças renovadas de que batalhar é, por fim, compensador. Quero, sobretudo, meus sorrisos mais espontâneos de volta. E, por favor, que seja logo.


16 de março de 2013

Quando a consciência fala

É. Acho que chegamos ao fundo do poço, disse, surpreso, o espelho ao homem que o fitava com angústia.”


Vou ser sincero e te falar que não estou bem. Que digo o que vem à cabeça e isso é uma autoproteção. Vou ser direto e falar coisas que não irão agradar. Mas, afinal, quem se importa em ficar agradado? Eu penso que certas trevas crescem como hera nas paredes, e tais somos nós e nossas relações descuidadas. Mas pregaram como praga e não me vejo mais em você, e nem você me reconhece mais. Somos escuros um ao outro, temos nulidade nos olhos. Um grande vazio que suga, transformamo-nos em parasitas de nós mesmos. Um olhar, uma cartada. Fulminante.

Vou abrir o peito e dizer que não sou herói de ninguém. Mas pretendi ser, um dia, um dia que é distante agora. Vou abraçar-lhe e segredar em seus ouvidos coisas horripilantes que andei pensando. Mas é assim a vida, feita de reflexo do que imaginamos ver que, desdobrando-se de novo, é um reflexo do que pensamos que é. Mas não é, tudo é desastroso, oh, Deus!, estou encharcado de lágrimas e não as mereço. Falo de coisas grandes como a noite e tenho medo de ruídos na madrugada.

Mas a verdade, tão triste de reconhecer, é que não escurecemos as vistas. Antes, escurecemo-nos a nós, tornamo-nos um oco, vago, dilatado e recluso.



9 de março de 2013

Sua lucidez, meu espanto

"There is no great expression in this worn-out eyes."


I) Desapego

Correr, fugir, escapar.
Escapade now!

Ouvimos o sinal, distante, fatigante e tal…
Once more: escapede now! There is no other out!

Caminhar, rastejar, pular.

Deixará o dinheiro para o faxineiro, a cartola e a bola para os netos da senhora e o pão... será escondido no colchão.

Escapade! Caminhar, fugir, pular. Prosseguir e não terminar.


II) Minha lucidez no fim da linha

No horizonte, vejo o sol nascer, belo. Então, sou dominado por uma vontade, uma inquietude magnífica de sair. Começo a percorrer o caminho que primeiro alcança meus pés e o movimento de andar se torna involuntário.

Perguntar, sem ter quem responder.
Olhar, sem poder chamar alguém pra ver.
Pensar, ou pensar que pensa. Além.
Sentir, e não ter palavras para descrever.
Prender, mas não ter como trancar. Deixar escapar, sem ter como impedir.
Deixar-se dominar, sem querer ter forças para resistir. Esse é o caminho.
Falar e não parar, mesmo sem alguém para escutar.
Falar, falar até o outro os ouvidos tapar. Assim deve ser o caminho.
Saber, mas não ter a quem ensinar.
Contar, sabendo que não se chegará ao fim.
Tomar, beber. Até o cálice esvaziar.
Gritar, saltar. Chutar, empoeirar.
Sentar-se no chão, cruzar as pernas e fazer círculos com a mão.
Chamar a atenção, mesmo sabendo que não te perceberão...


III) Praça deserta

Ele caminhou até a praça deserta. Folhas secas cobriam o chão. Velhas árvores faziam uma leve sombra sobre o local. E havia um chafariz. Como ele amava brincar no chafariz.
De repente, um barco. De folhas velhas, não secas. Não mais secas. Folhas de jornal. E soprava com animação a distração, que já não era invenção.
Próximo ao chafariz, um banco de madeira velha, e que nem por isso deixara de se nobre, convidava-o a se sentar. Um breve diálogo, e o sábio centenário assento o convencera. Largou o barco. Deitado desconfortavelmente, dormiu.
Onde estava Anilór, a prima de infância, a prima de praça, de inquestionável decência? E reviveu momentos quase mortos pela memória. E o chafariz teve água de novo.
Acordou. O sol desapareceu, anoiteceu. O passeio havia acabado. Anoiteceu. Se ainda estivesse viva, Anilór já teria ido pra casa. Se ainda estivesse viva, sua mãe já teria acendido a brasa. Anoiteceu. E na escuridão do caminho, ele se perdeu.


IV) Sua lucidez, meu enigma

Algo espera por mim, não sei se é ruim. Meus olhos arregalados, meus pêlos arrepiados. Algo vela por mim, será meu pai?, será minha alma, acorrentada pelos meus pecados ilegalmente defenestrados?

É uma noite tempestuosa, estou com medo. Tremo de medo, incontrolável sentimento que expulsa lágrimas de desespero de meus olhos cansados, arregalados. Estou escorado na parede úmida, na penumbra de minha masmorra mental.
Ali, atrás do aparador de meu falecido genitor, eu sinto. Não há mais pensamento, não há mais batimento. Vejo, reconheço. Detrás do aparador, são os dedos do mal. E apontam para mim, e me chamam, e sussurram. “Estive esse tempo todo esperando por você, vem correr comigo no quintal.” Meu Deus, meu Deus, reconheço essa voz! É Anilór anunciando meu final.












































(Anteriormente publicado como Kerygma)

5 de março de 2013

Vidas nossas, líquidas



Ele calçou as botas de couro, viu pela janela o sol que se levantava, abriu e fechou a porta atrás de si. Partiu.


Há um momento de vida, mas é singelo.
Há um momento de pensamento, mas é controverso.
Há um momento de levantar as mãos para o céu, mas é comedido.
Há um momento de olhar para trás, mas é medroso.
Há um momento de olhar para o que se foi, mas provoca choro.
Há um momento de se equilibrar no meio-fio, mas é lúdico.
Há um momento de fé, mas é abstrato.

Passo sobre passo atrás de passo, ritmo e velocidade, compasso, flashes mentais, cenas interrompidas, sons aleatórios, passo sobre formiga atrás passo, uma folha seca, crec!, passo, cadarços bem amarrados.

Há um momento de sorrisos, mas é barato.
Há um momento de promessa, mas é desconfiado.
Há um momento de diversão, mas é um só momento perdido em uma escura galáxia de outras horas.
Há um momento de contestação, mas passa pois um somente não empurra o mundo.
Há um momento de conformismo, mas é ilusão pura.
Há um momento de vida, mas é disfarce.
Há um momento de dança, mas embaralhamos os pés.
Há um momento de beijos ardentes, mas era fogo na palha e consumiu-se.

Às vezes ele para num banco de praça, observa os pombos e a fonte. Mas o encanto só durará até o primeiro mendigo pedir-lhe um cigarro. Como fugir? Do que fugir?

Há um momento de egoísmo, mas é fatal ao espírito se se mantivesse.
Há um momento de braços abertos ao vento, mas é sucedido pelo cansaço.
Há um momento de sonhos realizados, mas é efêmero.
Há um momento de gargalhadas, mas é vazio como o plástico.
Há um momento de sonho, mas é sintético.
Há um momento de fuga, mas traz efeitos colaterais.
Há um momento de sobriedade, mas é insuportável.
Há um momento de vida, mas é esperança tão somente.












14 de janeiro de 2013

Redenção


(Não sei na voz de quem falo, não sei de quem é a voz por quem digo. Confuso fico. Posso estar falando de mim só, posso estar falando por uma voz que nem sei se confio. Posso estar falando por dois, posso estar falando pelo depois. Só sei que falo, despejo, intrometo sem pudores. Confuso fico, mas ainda assim prossigo.)


“Então todo o movimento cessou. E o que ficou? De uma só vez pararam as bocas, pararam as contrações, as mentes, os corações. E o que pairou? Silêncio. No calor do momento, o abraço, o alento, o contentamento. Ilusões da profusão das almas e dos vapores? Mecânicos gestos previsíveis por estarem as veias tomadas de torpor?”


E, de repente, cessou todo movimento. Em silêncio permaneceram, cada qual imerso em si, possivelmente mais profundamente do que há muito tempo já tiveram a oportunidade de estar.

E daquele silêncio, daquele cansaço que não era cansado, daquela desativação momentânea de todas as sinapses, o que se depreendia?

Todas as frustrações passadas, lavadas? Todas as luzes, fachos poderosos, apontados numa direção que é, ou fora até então, sempre tão nebulosa, conseguiam limpar de vez aquele céu? Todas as inquietações, soterradas de uma vez ou, escavadas com mãos e unhas sangrando, com força e barro, com dor e lágrimas, trazidas à tona? Nenhum sinal, nenhum passo brusco, nada se podia saber dali.

Em silêncio permaneceram. Cada qual com mãos dadas umas às outras, como que numa ciranda congelada. Mas e congelados os corações, estavam? Os segundos de uma sensação eternizam uma década. Olhos abertos olhando ora para outros, ora para o branco do gesso acima, ora para as circunvizinhanças. O que diziam? O que se permitiam?

Silêncio. Cumplicidade de sentimentos, de sensações e felicidades? O que se passava ali, naquele pedaço de tempo recortado, por vezes, e tantas, imaginado? O que trazia o fato? Cortavam-se em pedaços, esmigalhavam-se os ideais de uma felicidade comunal, de um contrato conjugal, ou, pelo inverso extremo, sentiam que havia se cumprido o que há tanto era prometido, como se o cumprir-se fosse uma confirmação de uma história (quantas vezes) idealizada?

E o que era para uma voz, era o mesmo para a outra? Talvez não fosse essa a preocupação que planava naquela áurea de paz. Talvez, por uma vez, tenha cada qual chegado ao seu êxtase, fosse por si ou pelo outro, ou por todos. Perguntavam-se aquelas vozes, em seu íntimo, o que viria depois? Poderia o pensamento chegar a tanto, ou era uma sensação de que nada importaria daqui um minuto ou daqui uma semana, nada além de agora, aquele pedaço de acalento absoluto?

E se fossem externalizadas tais pessoas, tão plurais por ora, mas, agora, tão congruentes, o que lhes viria em mente? Seriam dissonantes seus acordos, seus acordes profanos e tão sagrados?

Em silêncio permaneceram. Estavam imersos em si. Estavam imersos, também, um no outro. Mais profundamente do que, provavelmente, jamais puderam estar.

7 de janeiro de 2013

Deixa estar ou deixa mudar, tanto faz


"Não me sinto bem."



Vejo preto, tudo escuro. Vejo e não quero ver. Vejo e não tenho ânimos pra ver. Um angústia me consome, há tanto me carcome que não sou mais eu, sou ela e eu, sou mistura de neblina nos olhos e dizeres mecanizados. Isolada mente, resguardada da brutalidade da frieza ou desativada pela desnutrição de pulsares vívidos. Sou eu, de um jeito que não sou, que não quero ser.

Respeito meus limites e evito mostrar a penumbra àqueles por quem tenho apreço e profunda admiração. Estou mau, cheio de desejos que corto, um a um, com uma tesoura indigna. Como que por profundo prazer masoquista, picoto minha imaginação e restrinjo meus sonhos; esse não sou eu, embora seja ainda.

Deixa estar ou deixa mudar, tanto faz, tanto fez. Assim sigo, sem forças ou vontades nem pra bater a poeira das botas. Arrasto e faço rastro, por pura inanição. Olho sem expressão, passo os dedos na barba, consumo-me, comunico-me de verdade apenas com o cigarro e as xícaras, amigas minhas. Pseudo-lunático estou me fazendo, dia após noite. As manhãs não são tormento e não trazem alento. Nada. São manhãs, no sentido técnico perfeito. Nova virada da Terra, mecânico efeito que nos faz estar novamente expostos à luz.

Há no centro de um tornado uma presença, sentada, de olhos distantes, contemplativos. Sou eu, de joelhos nos braços, mãos cruzadas, pés no barro e calça dins de barras levemente desfiadas. Contemplo o tornado que eu mesmo criei ou, de certa forma, deixei formar-se em torno. Virá um salto, uma cambalhota, um grito, um giro?