20 de dezembro de 2012

Inaugurações


Toca o despertador, sobe pelas minhas janelas um inconfundível cheiro de diesel queimado. É uma combinação quase tão obrigatória quanto meus cafés da manhã regados a cafeína e nicotina. Sem eles, eles todos, eu não sobreviveria uma semana. Os caminhões despertam cedo, mais que eu, e iniciam sua caminhada diária; percursos, muitos, que incluem a minha basculante de vidro rachado, que com seu tremor também me arrasta, é dia, já.

É mais um dia na minha agenda, é data nova inaugurada no calendário da padaria pendurado num prego que se intromete entre dois azulejos na cozinha. Arrasto as chinelas, depois piso mais firmemente, depois já estou de porta de geladeira aberta, escolhendo várias coisas para acabar com poucas na mão. O relógio é meu ditador, e rezo todas as noites para que não o seja por toda a minha vida. O relógio é meu tutor e rege-me com tamanha disciplina que, quase sempre, penso se tal é necessária de fato. Entre ponteiros, primeiro de segundos, inofensivos ao primeiro beijo, mas depois de minutos, que avançam impiedosos, tenho de ferver a água e vertê-la sobre o pó, fazer rápido o café para poder ter ao menos alguns minutos devotos sobre minha mesa.

(Tudo é perigoso, tudo é divino, maravilhoso, diz Gal, e prossegue, Não temos tempo de temer a morte. A acepção desta falta agora é outra. Não temos também mais ideais improfanáveis e motivações viscerais para não o termos. Agora, tudo é bastante trivial. E lembro-me de Renato: Todos os dias, antes de dormir, lembro e esqueço como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder... Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério e selvagem!)

Sentado estou na minha cadeira, acompanhando meus pensamentos com uma profunda tragada nestes cigarros de palha que têm sido tão bons companheiros, e o outro olho na implacável soma dos minutos que me apontam os ponteiros ali na parede. Café desce rápido pela garganta, entra fumaça, entra café, sai fumaça. E nesse meio estou já com um pé do tênis calçado, amarrando o cinto, faltam cinco.

Inaugurado o dia e também suas felicidades, delicadas pois que se desfariam sob uma análise mais aprofundada. Inaugurada mais uma manhã, mais um amanhã, mais um capítulo desta busca, eterna enquanto consciente for. A promessa de alegria, por enquanto, é a chegada da noite, e seu acúmulo, a do fim de semana. Mais instigante que compreender-se satisfeito por tão pouco é pensar que neste regime vivem imensos contingentes de seres humanos, amaciados por entretenimentos perigosamente alienantes. Mas não vou falar de alienação, este é um assunto desinteressante, este é um papo chato. Quero saber da festa, da noite, da roupa, das parcelas do cartão, do limite aumentado, do consumo esperado, do novo ismartifone, da nova coleção, dos cavalos do motor do carro do ano.

Toca o despertador, tremendo já estão as peças de vidro da basculante pelos pneus prensados por toneladas, toneladas de rotinas e chateações, de preocupações e prazos. Todas transmitidas maquinalmente a mim, de um jeito ou de outro. Acordo, inebriado pela noite não mal, mas pouco dormida. O café e as outras fumaçam me fazem animar, embora pouco. Segue-se a segunda-feira, sob a imposição moralista dos ponteiros marrons, que correm ao bel prazer da pilha tamanho médio. Em minhas divagações de mesa coberta por toalha e farelos, a vaziez de uma sucessão de dias iguais, com atividades iguais e pouca ou nenhuma contribuição, nestas, para alguma mudança, ou quebra. Levanta-te, homem!, penso comigo. Faltam cinco!










3 de dezembro de 2012

Da minha sacada de arames farpados, escrevo



Não quero pulmões limpos.
Não quero dias enfadonhos.
Não quero cuecas de marca.
Não quero capitalismo selvagem.
Não quero dinheiro saltando dos bolsos.
Não quero religiosos fundamentalistas.
Não quero uma sociedade organizada por heterossexuais machistas.
Não quero carros potentes.
Não quero ostentação, tampouco exibicionismo.
Não quero demostrações de poder sobre os mais fracos.
Não quero mulheres tratadas como mercadorias.
Não quero talheres de prata.
Não quero luxo.
Não quero caviar na minha mesa.
Não quero estratificação social.
Não quero caminhonetes carregadas de alto falantes.
Não quero dinheiro por dinheiro.
Não quero uma vida saudável e opaca.
Não quero passar despercebido.
Não quero ofuscar meus semelhantes.
Não quero classe A.
Não quero as universidades públicas ocupadas pela elite.
Não quero elite.
Não quero uma juventude derrubada por drogas.
Não quero uma sociedade opressiva e desigual que, na desesperança que traz, é a causa maior da busca por uma vida entorpecida.
Não quero pessoas medindo umas às outras por suas posses e suas compras.
Não quero viver sem Gal.
Não quero estar em meio a sorrisos alienados.
Não quero capitalismo.
Não quero uma vida sem fumaça.
Não quero desperdiçar mais um dia com heterossexuais de reprodução, bem com homossexuais de futilidade inútil.
Não quero futilidade.
Não quero passar nem mesmo uma semana longe da literatura brasileira.
Não quero acordar sem café.
Não quero.