20 de dezembro de 2012

Inaugurações


Toca o despertador, sobe pelas minhas janelas um inconfundível cheiro de diesel queimado. É uma combinação quase tão obrigatória quanto meus cafés da manhã regados a cafeína e nicotina. Sem eles, eles todos, eu não sobreviveria uma semana. Os caminhões despertam cedo, mais que eu, e iniciam sua caminhada diária; percursos, muitos, que incluem a minha basculante de vidro rachado, que com seu tremor também me arrasta, é dia, já.

É mais um dia na minha agenda, é data nova inaugurada no calendário da padaria pendurado num prego que se intromete entre dois azulejos na cozinha. Arrasto as chinelas, depois piso mais firmemente, depois já estou de porta de geladeira aberta, escolhendo várias coisas para acabar com poucas na mão. O relógio é meu ditador, e rezo todas as noites para que não o seja por toda a minha vida. O relógio é meu tutor e rege-me com tamanha disciplina que, quase sempre, penso se tal é necessária de fato. Entre ponteiros, primeiro de segundos, inofensivos ao primeiro beijo, mas depois de minutos, que avançam impiedosos, tenho de ferver a água e vertê-la sobre o pó, fazer rápido o café para poder ter ao menos alguns minutos devotos sobre minha mesa.

(Tudo é perigoso, tudo é divino, maravilhoso, diz Gal, e prossegue, Não temos tempo de temer a morte. A acepção desta falta agora é outra. Não temos também mais ideais improfanáveis e motivações viscerais para não o termos. Agora, tudo é bastante trivial. E lembro-me de Renato: Todos os dias, antes de dormir, lembro e esqueço como foi o dia. Sempre em frente, não temos tempo a perder... Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo. E tão sério e selvagem!)

Sentado estou na minha cadeira, acompanhando meus pensamentos com uma profunda tragada nestes cigarros de palha que têm sido tão bons companheiros, e o outro olho na implacável soma dos minutos que me apontam os ponteiros ali na parede. Café desce rápido pela garganta, entra fumaça, entra café, sai fumaça. E nesse meio estou já com um pé do tênis calçado, amarrando o cinto, faltam cinco.

Inaugurado o dia e também suas felicidades, delicadas pois que se desfariam sob uma análise mais aprofundada. Inaugurada mais uma manhã, mais um amanhã, mais um capítulo desta busca, eterna enquanto consciente for. A promessa de alegria, por enquanto, é a chegada da noite, e seu acúmulo, a do fim de semana. Mais instigante que compreender-se satisfeito por tão pouco é pensar que neste regime vivem imensos contingentes de seres humanos, amaciados por entretenimentos perigosamente alienantes. Mas não vou falar de alienação, este é um assunto desinteressante, este é um papo chato. Quero saber da festa, da noite, da roupa, das parcelas do cartão, do limite aumentado, do consumo esperado, do novo ismartifone, da nova coleção, dos cavalos do motor do carro do ano.

Toca o despertador, tremendo já estão as peças de vidro da basculante pelos pneus prensados por toneladas, toneladas de rotinas e chateações, de preocupações e prazos. Todas transmitidas maquinalmente a mim, de um jeito ou de outro. Acordo, inebriado pela noite não mal, mas pouco dormida. O café e as outras fumaçam me fazem animar, embora pouco. Segue-se a segunda-feira, sob a imposição moralista dos ponteiros marrons, que correm ao bel prazer da pilha tamanho médio. Em minhas divagações de mesa coberta por toalha e farelos, a vaziez de uma sucessão de dias iguais, com atividades iguais e pouca ou nenhuma contribuição, nestas, para alguma mudança, ou quebra. Levanta-te, homem!, penso comigo. Faltam cinco!










3 de dezembro de 2012

Da minha sacada de arames farpados, escrevo



Não quero pulmões limpos.
Não quero dias enfadonhos.
Não quero cuecas de marca.
Não quero capitalismo selvagem.
Não quero dinheiro saltando dos bolsos.
Não quero religiosos fundamentalistas.
Não quero uma sociedade organizada por heterossexuais machistas.
Não quero carros potentes.
Não quero ostentação, tampouco exibicionismo.
Não quero demostrações de poder sobre os mais fracos.
Não quero mulheres tratadas como mercadorias.
Não quero talheres de prata.
Não quero luxo.
Não quero caviar na minha mesa.
Não quero estratificação social.
Não quero caminhonetes carregadas de alto falantes.
Não quero dinheiro por dinheiro.
Não quero uma vida saudável e opaca.
Não quero passar despercebido.
Não quero ofuscar meus semelhantes.
Não quero classe A.
Não quero as universidades públicas ocupadas pela elite.
Não quero elite.
Não quero uma juventude derrubada por drogas.
Não quero uma sociedade opressiva e desigual que, na desesperança que traz, é a causa maior da busca por uma vida entorpecida.
Não quero pessoas medindo umas às outras por suas posses e suas compras.
Não quero viver sem Gal.
Não quero estar em meio a sorrisos alienados.
Não quero capitalismo.
Não quero uma vida sem fumaça.
Não quero desperdiçar mais um dia com heterossexuais de reprodução, bem com homossexuais de futilidade inútil.
Não quero futilidade.
Não quero passar nem mesmo uma semana longe da literatura brasileira.
Não quero acordar sem café.
Não quero.







12 de novembro de 2012

Embaixador do mundo


Sou inseto. Verde, vermelho, azul, voante. Nascido do incesto. Depois das chuvas drásticas, cá estou para cobrar o que meu é de direito. Estamos juntos nessa, não tenha pressa, não tenha medo. Tudo o que eu disser, tudo o que eu zunir, assine de comum acordo, sou inseto. Eu sei das coisas. Estive à sua frente, sou embaixador do mundo. Vi por meio dos meus multi-olhos o que você não suspeita nem mesmo existir.

Sou coreógrafo, sou dançarino, sou piloto de fuga. Acompanhar-me você não consegue, saber meu próximo rumo é seu dilema, vivido de mãos espalmadas. Deprecio-te enquanto faço zumbir e retumbar seus tímpanos de humano pesado e rastejante, sou o mestre dos acordes, sou de muito antes, sou de muito antes. Onde eu me escondo não é do seu bico, meu mundo é maior que o seu, minha vida é mais provida que a sua. Sou perigoso, sou impaciente, sou o sinal da resistência. Sou pequeno, sou discreto, sou inseto. Não tenha medo, estive à sua frente.

Nada de venenos, nada de truques baratos enquanto segredo indecências do mundo em seus ouvidos. Não tente lutar comigo, sou impertinente, sou valente, sou insistente. Inseto sou, como verme que povoa seus pesadelos. Dessa grandeza que você julga ter, ainda me teme. Sou portador das suas doenças, que oportunamente não me matam. Venho de antes deste capitalismo egoísta, venho de antes das suas bombas atômicas e muito certamente permanecerei depois delas. Respeite-me, admire-me e encoraje-me. Venho de uma família mais quantitativa que a sua e nem que setuplicasse as chinas do mundo, nem que povoasse a Lua, estaria em par de confronto com meu número.

Sou musical, sou predecessor, sou clarividente, sou voante, sou manipulador, sou anestesista, sou venenoso, sou iluminante das noites. Sou embaixador do mundo.



19 de setembro de 2012

Eu, vinte e três


Sem inspiração, acendeu um cigarro. Acendeu por gostar da fumaça, não por esperar vir nela um pingo de ideia, um insight. Percorreu lentamente as paredes do quarto. Mirou no velho cinto de couro pendurado, que, dotado de fala fosse, diria Não aguento mais ficar aqui, pendurado pelo pescoço a ver o que ocorre dentro deste guarda-roupa, meses a fio. Tinha muitos cintos, ponderou, mas a verdade é que pouco os usava depois que avivara a cintura com cinco quilos a mais desde o início do ano. Deu pouca importância.

Havia há pouco feito uma pequena mudança na geografia dos móveis, precisava de uma mesa para sentar e por a cabeça a estudar um conteúdo diverso, prova à vista que tinha, e o tempo não era lá muito. Também, gostava de estudar assim, na pressão. Caso lesse com muita antecedência, acabava o conteúdo por fugir daquela cabeça que, já antes dos vinte e cinco, apresentava calvície mais ou menos avançada. Uma música tocava, música que combinava com a fumaça que passeava, livre, sobre o teclado.

Considerava fugir daquilo o mais rápido, das pressões patriarcais, da cidade já muito desbastada por ele, das mesmas faces e ruas. Pudesse ser vivida a vida assim, a cada dois anos mudando de cidade e de pessoas, mas sempre construindo amizades, deixando rastros que pudessem ser seguidos e saudade no peito, dele e dos outros. Assim que devia ser. Outras construções deviam vir, concomitantemente, pois ele se sentia inútil ao pensar que seu ponto de vista, aliado aos estudos que já fizera e à vontade de conhecer e fazer conhecer não resultassem em nada que fosse proveitoso, principalmente aos outros, portadores de menos oportunidades que ele no percurso já trilhado da existência.

Ainda sem inspiração, de cigarro já amassado no cinzeiro, resolveu que amanhã começaria a colocar as apostilas de tal prova na cabeça, custasse o que custasse. E deu-se por satisfeito por tudo que havia feito até o dia presente. Aguardassem os outros, ele seria grande ainda, mesmo que mantendo-se pequeno. E nesse embalo, adormeceu.


17 de agosto de 2012

Confissões de um tolo


"Eu, quando dei o tiro, não me lembrei de mais nada."


Eu. Pessoa nascida em um mundo de chão, terra, sangue e unhas enegrecidas de carvão. Eu, carne e fé, pessoa de verdade, com méritos no peito. Mas, quando apertei o gatilho – ingenuamente chamado por mim de botão -, destitui-me de todos esses predicados ou denominações. Porque eu preferi assim.

A mim foi negada a verdade sobre o caso, e também sobre seus desdobramentos. Muito embora me envolvessem em totalidade. Eles não sabem que eu sei. Eles provavelmente jamais saberão. Eu sei, eu sei.

Perdoe-me, eu fui um tolo. E para pagar minha culpa carreguei, nas costas, o peso que é reservado a todos que agem como eu. Somos tolos. Por nossa ingenuidade (repito a palavra, coisa que não gosto de fazer, mas não há outra), por nossa excelência em honestidade e devoção, somos tolos. A nós, nesse mundo de valores, foram destinados os castigos de levar sobre a cabeça o peso das ações dos demais em que estes atributos não figuram.

A mim, e a muitos outros que estão por aí, muito será tirado durante uma vida toda. Por saber respeitar a vontade do outro, por temer não preencher as expectativas de todos, por querer evitar sermos considerados desleais ou indesejáveis, somos tolos. Caem sobre nosso céu – que, particularmente, é muito mais azul que os demais – as trovoadas de lixos e desleixos dos outros que, não tolos, orbitam na esplêndida cobertura. Não é para nós tal maravilha.

Eles não sabem que sabemos. Nem todos sabemos, em verdade, mas à grande maioria, a quem foi destinado poder experimentar de toda sua tolice, nada pode ficar por muito tempo escurecido. Iremos descobrir e perceber como agem e como pensam de nós. Pobres são eles, pensando que, tolos, não conseguimos enxergar nada. A beleza da tolice é que, liberta, nos permite examinar todos os reflexos. Nada pode ficar despercebido.

Mas o mundo não pertence aos tolos, naturalmente. Não mais, talvez não mais há muitos e muitos tempos. Assim, deve ter sido a nós destinado um outro lugar, e de preferência que seja agraciado pelo cintilar do experimentalismo. Os não tolos, pelo que sei, imaginam saber de tais lugares, imaginam ter atingido o pico. Ora, que “tolos”, não? A serenidade de espírito – chave deste paraíso – não repousa em suas cabeças. Pobres.

Mas o mundo, este, não pertence aos tolos. A mim foi negada a verdade, a nós foi reservado um encargo injusto. Porque somos tolos. Por isso, despi-me de todos os predicados, reservei-os em um banco maciço e empoeirado. A partir daqui, regozijei-me, não serei mais conhecido por denominações ou posses. Essa dor, este peso cairá; não me lembrarei mais de nada. Eles provavelmente jamais entenderão. Foi quando apertei o botão.


27 de julho de 2012

Quinto grau


Parte Um – colapso nervoso pós-traumático

Aqui estamos sentados nessas poltronas de couro. Há pequenos cortados aqui e ali, não se importe. O tapete camurçado é cortesia da casa, mas será removido tão logo essa nossa conversa chegue ao final. Quero os detalhes de sua aventura, quero saber mais sobre o que conta como um terrível pesadelo ou um sonho de dias dourados. Por favor, deixe-nos intrometer em suas lembranças. Sim, obrigado.


Parte Dois – um plantel de perguntas

Bem, senhor Marroco, gostaria de ouvir suas palavras sem interrupção ou pausas longas demais, gostaria de poder anotar as divagações e assuntos relacionados. O que aconteceu e onde você estava? Com quem eram aquelas pessoas com que você falava? Sim, então havia um ruído impossível? Porque as pessoas estão sempre inventando coisas o tempo todo, e tal, sabe como é. Sim, eram muito brilhantes? Pois, prenderam seus pés ao chão? Hum, pois não, prossiga.

Então havia dezenas deles em um “estacionamento”. Próximos a órbita, sim. Como uma missão colonizadora. Alta rotação que transformava o concreto em suposição? Poderia ser menos... poderia ser mais, hã, claro? Sim, matéria, ondas eletromagnéticas, hum, sim. E estavam predispostos a alguma coisa? Um conluio? Acho que vamos ter de ligar um gravador, o departamento irá se interessar nessas informações. Intimidado? Não, por favor. Estamos todos entre pessoas que prezam pelo futuro próspero dessa sociedade.

Diga-nos, há algum espaçamento de tempo não explicado? Viveu isso antes, então? Hum, sim, sim. Como uma outra consciência extra-dimensional? Física... metafísica? Acho que estamos avançando um pouco rápido. Pode detalhar-nos sobre o “jogo”? Hum, sim, sim. E estava de volta à rua? Seus pertences foram deixados para trás, senhor Marroco? Um maço de cigarro, ah, sim. Perdido? Na correria? O senhor acredita que a curiosidade, sim, sua, possa ter despertado o interesse deles? Um cigarro? Jonas, tem cigarros ainda na gaveta? A primeira, debaixo da cuba. Obrigado. Podemos continuar, senhor Marroco. Não, não é preciso se exaltar. Proteção do Estado? Bem, não posso garantir, mas podemos pedir alguns recursos. O material que o senhor tem é de extremo interesse para nós.


Parte Três – instruções prévias

[Zumbido agudo, dores lancinantes e olhos fechados.] Eles irão lhe fazer várias perguntas, pode repassar tudo que viu por aqui. Entendemos que há uma certa... estranheza nisso tudo, e que atualmente a sua percepção lógica pareça estar bastante abalada. Não faça perguntas, libere sua mente, tente me entender. Nos entenderemos dessa maneira, mas preciso da sua boa vontade. Nós temos boa vontade, não queremos agressividade de sua parte. Não precisa de garantias conosco. Iremos lhe mostrar coisas além de suas crenças, gostaríamos que estivesse atento para tudo o que se passa. [Flashes intensos]


Parte Quatro – painel desconcertado

Nos parece que aquele tal Marroco ficou bastante perturbado depois do que nos relata como experiência. Mas suas respostas foram bastante instigantes. Não, não conseguimos comprovar nada, bem como não percebemos nenhuma movimentação estranha ou localizamos nenhuma “concentração” nos locais das coordenadas. É uma questão complicada, ainda não podemos dar um parecer sobre a validade das respostas. Medo? Não, não acho que essa seja a melhor expressão. Talvez uma curiosidade, uma excitação tenha se colocado sobre os agentes. Estão trabalhando da melhor forma que podem. Não, ainda não temos nada formulado. Sinceramente, não me sinto abalado. Mas uma coisa me preocupa, Alaor. A perturbação do senhor Marroco é significantemente... real, se é que entende o que eu digo.



17 de julho de 2012

Pai morto


"Em outra percepção, o tempo não é, nunca foi. Por um fio a outro, todos estamos sempre aqui, agora."



Fantástico ambiente colorido, plumas rosas e capim dourado. Ele era nosso super-herói. O carro multi veloz que risca a paisagem e nos empurra para frente, nós nos vemos no tubo de luz, no canhão de eletromagnetismo, na chapa verde do hospital. Perfeitos seres humanos.

Lágrimas geladas e face ainda gordurosa, palidez que se espalha pelo corpo jeitoso. Era jeitoso com as mulheres que passaram na sua vida, era culto para ensinar-nos o que fazer diante daquelas imensas prateleiras do supermercado. Fantástico ambiente colorido, embalagens azuis e rótulos plastificados. Carrinhos que torcem a roda e mudam nossa direção.

Pisantes colados no asfalto, ritmo de cortejo, ruas ocupadas, flores brancas e arranjos coloridos. São todos seres humanos. Também formigas e as baratas saíram dos bueiros e cortam nosso caminho, e, ali, a igreja, de porta fechada para nós. E ele deu sua face para que examinassem, e a viraram para o chão. Segredos, vergonha e copos de aspirina com conhaque. Cabelo desgrenhado às seis da manhã, o anel da mão esquerda que caiu ralo abaixo e nunca mais foi encontrado. Ele, de fato, não queria encontrá-lo jamais. Era nosso super-herói.

Sofá que nos traga como a um cigarro e, depois, expele-nos. Agora, somos como fumaça. Espalhamo-nos contra o vidro, nos dissolvemos no chão. Nas paredes, seus antigos quadros de Pink Floyd brancos, pretos e com raios arcoirizados transpassantes. O homem com fogo na cabeça. Formatos divergentes como nós, cada um espalhado por um canto, por uma vida. A vida gerada de um só. E agora, quando a dele se foi, estamos nós reunidos de novo. Com lágrimas nas mãos e glotes fechadas, paletós pretos e sapatos feios. Como seres humanos que somos.

E agora, para onde vamos?



13 de julho de 2012

Do outro lado do horizonte, depois daqueles morros verdes


É noite e estou em meu quarto, sozinho. É noite, e o medo me distrai. É noite sozinha em meu quarto, é noite neste meu quarto sozinho. É noite.


Era noite naquela época, naqueles dias frios, quando eu apertava a mão contra o parapeito da janela azul. Era noite naqueles dias de inverno, quando tudo era incerto. Vivíamos em uma era de desertificação sentimental. Era eu mais Eu do que agora? O que fez? Para onde foram levados os sonhos juvenis?


Parte I

“Eu sei que estou andando aqui mais de uma vez. Parece que o sol já se pôs assim, não parece, Alfredo? Eu lembro de ter calcado essa pedra no peito do pé, era assim, exatamente assim... Não faz muito sentido...”

O que sabemos do tempo, ou do universo, ou o que sabemos de Deus, ou de deus, acho que é muito pouco ainda – ele falava, sozinho, enquanto percorria o dedo na superfície verde das folhas. Alfredo estava muito mais distante – de si e dele – durante essas indagações, e nenhuma resposta seria ouvida. Sua atenção foi desviada para umas borbulhas formadas na superfície estagnada daquela poça de água barrenta no meio do caminho. Tão simples quanto uma bolha, tão indefinido quanto o que chegava aos seus olhos quando a noite caía. Aquele tanto de pontos luminosos.


Parte II

De certa forma, o que era ontem permanece hoje. As dúvidas, no fundo, são as mesmas, embora se apresentem em nova roupagem. Ele permanece no mesmo ponto, observando as matas que se delineiam no horizonte longínquo. Os anos passaram mas as respostas não vieram. Virão um dia?

De onde estão seus pés agora, várias linhas saem e se esticam em rumos diferentes. Alguns são retos, outros tortuosos. Mas todos vão para lugares não abarcados pela visão. O fim de alguns é imprevisível porque há uma curva no caminho, o de outros porque se embrenham em construções diferenciadas. O fato é que ele sabe que vai ter de escolher algum dos caminhos. Contudo, quanto mais se anda, mais distante um se torna do outro. E se, depois da curva, depois da porta, depois da mata embrenhada, não se chegar aonde era esperado?


Parte III

[resultado desconhecido: o horizonte, por mais que se tente alcançá-lo, sempre estará a mais um passo.]





31 de maio de 2012

Era uma vez, num vale de sombras


“Uma noite destas, não saberás quando nem onde, a vida te pega.”


É aqui que eles falaram de desespero. Mas não sabiam o que invocavam. É aqui que se cortaram línguas, que se perderam almas, que deceparam mãos e pés. Neste vale de sombras, os pecadores foram exterminados um a um. Eu não clamo por misericórdia. A justiça para mim é um sonho inacabado.

Desejos grandes, braços compridos que acabaram me envolvendo como uma camisa de força. Perdi os fios de cabelo esperando pelo dia em que um sorriso verdadeiro brotaria no lugar. Escavei, repus, abracei o problema. O tempo, esse castigo, acaba se tornando assim, insuportavelmente lento, esticando para além da conta do aceitável a existência medíocre.

Eu estou de mãos estendidas, estou com olhar vívido; viro-me para os lados, estou gritando por olhos que me observem.

Quando as ruas de asfalto ainda me traziam para uma casa, quando após o dia ingrato de despejo de energias em atividades laborais, o mito eterno do trabalho, quando tudo isso ainda me reconhecia como vivente de um cotidiano, eu elevava a face com um pouco de dignidade. Mas tudo passa, e, quando você apenas rasteja, o que um dia você ajudou a erguer agora apenas te reconhecerá como sedimento, base esmagada para a elevação de outrem.

Eu estou de punho cerrado, protejo minha face dos tapas, estou gritando por ouvidos que queiram me ouvir.

Quando havia ainda olhos eu enxergava como a vida se trazia, como as pessoas se vestiam, como os valores eram atribuídos, do modo que, ao contrário, jamais seriam recíprocos. O anel com que o noivo presenteia jamais precisaria da mão da dama para sua existência, é absoluto em si. E, enquanto se passaram as décadas, passeando diariamente ou preso na caixinha de veludo, ele presenciou as ridículas façanhas humanas, seu desespero para conter as marcas do tempo, que outros, sábios, compreenderiam como evolução, desenvolvimento. E quando ruiu o casamento, o mesmo anel estava ali, afogado em risadas, igualmente absoluto, consciente de que ele, sim, entraria eternidade adentro.

Os desejos ardentes me queimaram e transformaram meus lábios em um rastro de ferimentos tristonhos. Os braços longos que usei para abraçar meus ideais me envolveram como a serpente, prendendo-me nesta imobilização, este casulo de mim mesmo, amarrado. Neste vale de pecadores, a justiça é uma misericórdia perecível.

Enquanto faço círculos na areia, assisto o arraste da multidão, o furor por uma trivialidade efêmera. Ergo minha face, procuro algum olhar perdido, disposto a compreender. Sussurro, mas eles não ouvem. É aqui que eles falam de desespero. Mas não sabem o que invocam. 

19 de abril de 2012

Traição

“Então era ela. Escondida entre as folhagens, iluminando com o olhar o avesso do espírito, o escuro do ser.”


Foi Maria quem acordou no meio da noite. Reluzente, com os sapatos de cetim e as fitas coloridas no cabelo esbranquiçado. Poderia estar enganando, poderia estar mentindo, poderia estar dormindo. Mas não, estava lá, de pé da cama, reluzindo como um lustre de antiquário. É ela, é ela que abana com o lençol enquanto você se despede da vida na janela todos os dias no fim da madrugada.

Maria, Maria com copo d'água na mão, Maria com as mãos na cabeça, Maria com a cabeça no copo d'água. Com seu vestido de camurça avermelhada, é ela. Poderia estar morrendo, poderia estar tendo um ataque cardíaco com ingestão de arsênico. Mas não, estava lá, sustentada por sedativos de cafeína. Enquanto você parte para um outro jogo, enquanto eles te dão o bilhete, enquanto papai fatura milhões, é ela quem dá o sorrisinho de canto de boca. De canto de parede.

Sentada sobre as pernas, torcendo dedos e esvoaçando o cabelo, Maria pensa. Maria decide sobre avançar uma casa, avançar um patamar. Maria pensa sobre o beijo não dado, sobre o sexo de todas as noites, sobre o que poderia fazer com quem se aproximou demais. Maria, no tapete de bolinhas de alumínio, pensa sobre o homem misterioso do gabinete vizinho. Olhando as horas, contando relógios, é ela.

Do alto do salto precipita-se para uma queda livre. Olha pra baixo, vira as janelas, tampa as panelas. Essa vida de dona de casa, essa vida de supermercado de Maria. Ela realmente quer rolar, quer se jogar escada abaixo e transitar pela atenção não recebida. De mãos unidas e anéis dados, de braços cruzados e semblante calculado, é ela. Vai dar um passo e estender sobre a razão um pano de prato.

Dentro da gaveta, fechada sob a tampa da caixinha de música, é ela. Maria bailarina, Maria modesta menina, Maria da cordinha. Vai vazando como som que encanta, vai soando como canto que hipnotiza. Adeus, adeus, diz ao reflexo do espelho de todos os dias. Poderia estar pensando, poderia estar tomando pílulas de tarja-preta. Mas não, Maria estava apenas ressonando, suando, zunindo. Sumindo pelos gramados, se adornando de folhas verdes, amarrando o cabelo em coque, tornando-se inalcançável. É ela.

17 de abril de 2012

Get in love, get out of

Ligado.

Como luz. Como água que desagua, irrompe, estraga, destrói, constrói e derrama-se pelos olhos de quem fica pra trás. Como luz que queima, transborda, percorre, leva e mostra. Como conexões de humanos cheios das humanidades.

Desligado.

Fica pra trás. Deixado, esquecido, escurecido. Tudo é escuro, ainda que brilhe sob a folha verde o foco de luz da lágrima escorrida, insistente e dolorida. Alguém que entoa um canto doentio e persistente, esquecida, elo quebrado da corrente, esfriada. Deixada pra trás.

Ligado.

E faz-se caminho, e faz-se a passos largos ou alargados novos rumos de uma estória que poderá, um dia, constituir história. Como contos de rua, como conversas de porta, como o causo que saiu no último instante da visita que ampliou, no alpendre, a despedida. Histórias de poste provido de lâmpada enfraquecida, amarelada. Fatos de folhas secas, fatos de folhas empoeiradas de jornal. Fatos. E fotos, para que se mantenha permanente a figura de quem já foi, um dia, o dono de seu coração.

Desligado.

Com um toque para baixo, nada mais se vê, nada mais além do que está permanentemente, e nem tanto assim, gravado na memória. Mas a memória é demasiadamente composta de humanidades e, assim sendo, há de esquecer um dia, quando a dita-cuja lembrança não se fizer mais dolorida ou fonte de risada. Com um toque que pressiona para baixo, tudo é escuridão, tudo se desmonta – embora não se apague. Sem sombra não se nota minha existência, ainda que, enquanto consciente, eu tenha a certeza de que aqui estou.

28 de fevereiro de 2012

Xícara solitária no meio do terreiro

"Aquele que me vê nem de longe imagina. Debaixo da face serena, um turbilhão de emoções gritam e se desesperam."


Xícara solitária, por que estais assim, tão calada? Não enxerga, daí, meu pranto que escorre acalorando a face desolada?

Xícara solitária, antes transbordante e passante [de mãos quentes a bocas conversantes], por que estais aí, tão reticente?

Xícara solitária, tão calada e absorta, a quem eu não ousaria incomodar senão por esse simples desejo de levar alguma palavra de consolo, não vê que abano as mãos a sua frente?

Xícara solitária, de cor esverdeada e aparência delicada, por que assim, deixada? Por que assim, esquecida?

Xícara solitária que não dialoga, embora esteja eu aqui em sua frente a clamar atenção ou prestes a fazer uma prece, a pedir-lhe proteção. Por que assim, tão desiludida?

Em um pouco de mim há você, embora eu não saiba se também a mim você deseja. Assim, dessa forma, fico aqui, a pairar sobre a caixa d'água, a te olhar no terreiro, a te querer tão bem. Dessa forma, assim, fico a contemplar, ainda que minha imagem não se reflita em suas pupilas envidraçadas.

Por que assim, tão destituída de esperança?



25 de fevereiro de 2012

Vizinhos

Dançam.

Pedem por uma caixa cheia de tomates, vermelhos como sangue derramado após a menstruação de todos os meses. Mastigam, embora a massa cozida excessivamente não exigisse muito que fosse feito tal movimento. Enrolam lenços no pescoço, toalhas de papel usadas para secar o óleo da face, da batata, das mãos de graxa do uniforme cinza.

A oportunidade passou por aqui, bateu, esperou e foi embora. Ela diz isso todos os dias mas sabe que, no fundo, há vida pululando a cada minuto, enquanto o pulso da música ritma os passos, a dança. Dança que ela faz sobre a cadeira ou sentada naquele cavalo selvagem. Enquanto lava louças do almoço, enquanto seca no sopro a ardência de um cotidiano. Às vezes falta, às vezes têm-se o que basta. Porquanto haja amor, você sabe, isso é o suficiente.