7 de outubro de 2014

Reencontro

João desligou a televisão, já chega, já chega por hoje, inconformado com a política. Na cozinha, jogou uns pães velhos na frigideira gasta, gasta como estava sua manga comprida puída e cinzenta, tirou café quente do bule. Fumegando.

Maria, ajeitando a gola da camisa, repassava o ferro pela terceira vez, tarde chuvosa de terça-feira, olhava pela janela e via carros e sombrinhas nas ruas, mas por dentro a agitação de sua vida estava tal qual a emoção de esfregar o metal quente sobre a roupa teimosamente amarrotada.

Dois quarteirões dali, na Panificadora da Avenida, de roupas molhadas, Marcos se senta e pede um misto quente. Está frio na rua, e ainda traz ele a barra das calças encharcadas. O relógio funciona mas é difícil precisar os minutos. Porra de relógio vagabundo, pensa, ao ver que a água que havia entrado por dentro do visor evaporara pelo calor do braço e agora tudo estava embaçado. Mas trazia um regozijo profissional e dificilmente, naqueles dias, abaixava a cabeça. O horizonte se mostrava ensolarado em suas perspectivas.

Com a flanela e o frasco de álcool na mão, Elaine fazia movimentos circulares nas vitrines da boutique, tentando remover as marcas dos dedos dos clientes que não sabiam olhar com os olhos os ternos em promoção, os sapatos que, ela sabia, despedaçariam as solas em poucos meses, produtos velhos de estoque que justificavam a liquidação. Elaine era absorvida pelo entra e sai dos clientes alvoroçados e desde que assumira o trabalho na Autónomo tinha menos tempo para repensar sua trajetória de moça radicada na capital-cidade-promessa. Coisas da rotina.


Por um telefonema, Marcos e João se reencontraram. João, que tentava levar a vida de escritor e andava meio mal sucedido naqueles meses, fora alguns artigos pagos para jornais e os bicos como revisor de texto e normas para monografias. Marcos, executivo promissor, oito anos mais novo e notadamente mais visionário.

Maria era dona da farmácia que lutava por sobreviver num bairro suburbano ante o avanço cada vez mais agressivo das redes de drogarias que demoliam a concorrência de modo avassalador. Vivia na sobreloja, dividindo sua atenção com os afazeres domésticos e Jaciara, o peixe cor de rosa que ganhara no bingo beneficente da paróquia.

Uns nove anos atrás, se não me falha a memória, Maria e Elaine se formavam na mesma turma de graduação. Do interior do estado elas seguiriam, separadamente, rumo à mesma cidade, sem saber ao certo o que as esperaria. Maria aproveitou da prática em outras farmácias e poupou a ponto de montar o próprio negócio. A frieza da nova cidade a fez forte e boa administradora. Elaine amargava o descaso com suas próprias escolhas, que, numa das várias instâncias, a levaram a desperdiçar a mocidade com uma formação pela qual nunca se interessou.

Marcos 25, João 33. Conheceram-se num festival de arte, tempos atrás, imensidões de realidades atrás. João era um entusiasta, Marcos titubeava entre escolher o Direito ou a Engenharia – mundos distantes como se um se chamasse ele mesmo e o outro, João. Foi um romance de fim de semana que se estendeu por alguns meses, com toques de produção norte-americana aqui e ali. Os sonhos juvenis que tinham terreno para crescerem, numa certa irresponsabilidade que acompanhava o entusiasmo explosivo de João e a pouca idade de Marcos.

Elaine nunca havia tocado uma mulher. Até aquela semana, em que se permitira sair de sua vidinha interiorana para conhecer um evento que chamavam de cult, era quase a moça boba que admira os homens que lhe passam na janela, com exceção de que estávamos lá no século XXI, e esses romantismos não existem mais.

Samba, cerveja, garoa. Frio. Volta pra casa, todos meio altos, frio, abraços. Casa grande, alugada, alguns remanescentes da festa daquela noite, gente aqui, cômodos vazios ali. Cerveja, funk, música eletrônica. Risos, boca de Elaine sendo tocada pelos dedos adocicados de Maria, volúpia, medo. Carícias que jamais seriam tomadas como cristãs, 'Deus me perdoe' num íntimo abafado pelo desejo, curiosidade e pavor. Depois daquela noite, Elaine conheceu os seios rijos de Maria e a crueldade do autojulgamento e da punição da criação tradicional. Fechada em si, mal ousou desafiar palavras à colega de sala nos anos que viriam. Quando muito, olhares que se prolongavam ao encontro da outra e logo eram tolhidos pela mente perversamente moral.

Maria, que não tinha mais idade mas sempre fora mais desligada, desplugada das convicções morais, usava roupa relaxada e não escovava os cabelos. Também não se importou – ou não se mordeu – com o afastamento da affair de uma noite. A vida valia mais que se prender a acontecimentos e pessoas conflituosas.

O tempo passou e as birras de João se tornaram mais frequentes. Amargo e extremista, deixou que sua visão do jeito de ser das coisas obscurecesse o retrato que tinha do seu par mais juvenil. Marcos não tinha perspectivas, ele dizia. Era jovem demais, inocente demais, perdido demais. Apolítico. Marcos, que não queria ser direitista ou esquerdista, nem estava aí para ideologias e preferia se concentrar nos seriados que a TV paga do pai lhe oferecia, sofreu mas não entendeu quando a frieza de seu namorado se instalou de vez. Chorou, secou a fonte, diminuiu-se, mas não pode evitar um fim prenunciado.


Deus que me perdoe, lembrou Elaine quando adentrou a farmácia atrás de um ansiolítico qualquer que a fizesse dormir mais de quatro horas por noite. As olheiras profundas as tinha encobertas por espessa maquiagem, com abuso de um pó de tom canela como sua pele. Um nó na garganta contorceu a voz de Maria, Maria do ferro de passar roupa e da vida adulta amarrotada e sem graça como uma camisa social.


Marcos, com uma mão no misto e outra no jornal do dia anterior, deteve-se por instantes na análise política que buscava mostrar as tendênciasvnegativas que viriam com a possível vitória da oposição naquelas eleições de outubro. As opiniões rasgadas o atravessaram tanto quanto a assinatura: João Queiroz Martins. De repente, naquelas palavras duras, viu-se um estudante de cursinho, bermudinhas apertadas e mocassim.

João lavava o bule e secou apressadamente as mãos para atender o telefone que tocava.

- Alô?

- Alô. João?

- Pois não, é ele.

- Jo... João. Sabe quem está falando?

- Não, não faço ideia. Quem é? É pra monografia?

- É o Marcos.

- Marcos?

- O Marcos de sete anos atrás.

- O... oi? Como?


Na noite seguinte e nas que se seguiram, Maria passou a se esmerar mais nos cuidados com a casa. Elaine pediu aviso e demitia-se da Boutique Autónomo, que, num passado distante, já fora referência em moda masculina, numa época em que a capital ainda ensaiava passos de cidade grande. Num passado menos distante, Elaine se martirizara com concepções morais que trazia da família patriarcal que a gerara. Agora, a vida encontrava meios para se fazer valer, e, diluídos nos impasses do cotidiano, dois pares de olhos pareciam encenar um conto de fadas, meio às avessas e com referências que pareciam originárias duma teledramaturgia. Maria e Elaine, cobertas, mãos atadas, dormindo suavemente.


Depois de uma noite que entrava na madrugada, aquecida pelos vinhos baratos do escritor puído, pelas ices do administrador de olhos claros e umedecida por lágrimas e contestações, Marcos seguiu para casa num táxi prateado. Na mesa de João ficava um cartão de negócios, que lhe podia valer por ter um telefone e e-mail de contato, mas jamais seria utilizado. O menino crescera e o entusiasta político se apequenara. Sem intimidações ou trocas de farpas, puderam ver que o tempo que mudara as perspectivas de ambos também secara o terreno em que um dia floresceram esperanças de uma vida hollywoodiana. No deserto daquela distância, somente lágrimas poderiam matar a sede, mas eram salgadas e o solo não se faria fértil novamente.

Quando fechou a porta, embasbacado pelo reencontro, pelo acaso, pelas mudanças que via operadas em Marcos, pela forma fria com que um dia havia ensaiado um fracasso intelectual no então pueril companheiro, levantou as mãos para o céu, fechou os olhos atormentados e vermelhos e gritou em silêncio. Pudesse ele, naquele exato instante, ser ouvido pelos anos e anos que se passaram.

Naquela noite, dormira com o rosto marejado, pensando na mediocridade que a vida podia assumir e como foram os caminhos para chegar até ali. Nas noites que se seguiram, o torpor diminuiu e os tormentos do próprio cotidiano cuidaram de apagar aquele êxtase de uma noite, e a vida seguiu-se.


(imagem: Reencontro, de Iamara Saute. Disponível em http://iamarasaute.com.br/)

7 de julho de 2014

Juaum

Juaum se debruça sobre as cobertas. É moleque na vida real e mlk na dúbia vida virtual. Juaum dezessete anos, pele sem pelo, tom de canela que foi ao forno para dourar. Juaum boca carnuda, penugem ao invés de bigode, que cultiva com orgulho, Juaum marginal não marginalizado, Juaum levado e frágil, brigão e retraído, feminino e masculino.

Na piscina, corpo esbelto com curvas suaves, é um torpedo humano, olhos levemente puxados e nariz esculpido, orelhas comportadas, mas o olhar é pronunciado, é prenuncia de perigo, quem mexe com Juaum mexe com a força criadora, o braço da Justiça, que é vendada, mas com lenço, e enxerga por cima dos panos.

Juaum estudioso e preguiçoso, queria subir na vida mas tinha delírio nas escadas, Midas moderno, tinha desdém do que não fosse seu e protegia suas posses como que de ouro fossem. Juaum lolito, Juaum esperto, precoce e ardiloso. Marrento e angelical, uma miragem em meio a um oceano salgado, miragem tropical, com marca de sunga no corpo.

Um dia Juaum amou. Despiu-se de suas vaidades e projetou-se num futuro que não era seu. Deixou de lado a falsa humildade e assumiu o olhar perverso que era sua alma sem cortinas. Roupa cinturada, braços musculosos, gestos delicados, passos de gato, Juaum não pisa em falso e brinca com suas vítimas, joga-as para cima e dá leves patadas, cravando-lhes sutilmente as garras fulminantes.

Juaum manso e arrebatador, sincero e covarde, Juaum pleno. Possessivo e ciumento, protetor de sua cria, que também era seu tutor. Juaum que encantava pela beleza e paralisava como Medusa, Juaum canto de sereia e espinhos de baiacu. Juaum tóxico e doce, armadilha armada e certeira. Juaum quase absoluto, porque o quase sinaliza que no próximo estágio está a perfeição destilada, em perfume e encanto.

Juaum bate, Juaum arranha o carro, se humilha em plena rodovia, Juaum quer ser amado e não pode admitir ser trocado. Juaum quer atenção, Juaum merece dedicação, quem não quer amar Juaum? Juaum troféu exposto na vitrine da boate, Juaum pau grosso, Juaum lábios suaves. Você não pode não querer Juaum.

Juaum apaixonado, lâmina debaixo das mãos, Juaum que faz sangrar e berra, Juaum que se atira no chão, Juaum bebê desprotegido, Juaum que precisa de sua mão, Juaum, encanto, Juaum. Por que você teria medo de Juaum?

Juaum jantar romântico, Juaum estilhaços de louça pelos ares, Juaum rastejando-se atrás de seus pés, Juaum precisa de seu carinho para se manter são, seu olhar fixo é o motivo da continuidade da vida de Juaum. Não percebes que assim pões em desespero o próprio Juaum, que pra você vive e arrasta-se por todas as esquinas? Juaum e você em fuga, Juaum perseguição. Não pode se livrar assim de Juaum.

Juaum fogoso e bom marido, Juaum perseverante e bunda empinada, Juaum povoa seus sonhos e lhe faz gritar no meio da noite, Juaum pode estar em todos os lugares, por que não estaria em sua cama agora Juaum? Se Juaum quer, Juaum tem de ter, Juaum deseja, Juaum exige, Juaum está cobrando sua contrapartida, por que não respirar por Juaum?

Juaum corta seus amigos, ninguém precisa de ninguém além de Juaum, Juaum modesto, Juaum beira a perfeição. Juaum te avisou, não se deve brincar com Juaum. Juaum criança indefesa, Juaum adolescente problemático, Juaum corpo de consumo de todos os sonhadores. Juaum rosto em pranto, Juaum gritos abafados, Juaum sexo cavalar, Juaum pés bem cuidados. Você não vai escapar da obsessão de Juaum.


3 de julho de 2014

Confissão em guardanapo



A cidade nos oprime. Os sons nos reprimem. E ciclicamente, vamos nos estourando em uma imensa nuvem de sentimentos, cada qual fora de seu lugar. São milhares de janelas, luzes, apartamentos. Olhos em vigia, de uma entidade que jamais dorme. E vivemos escondidos nas esquinas, longe dos holofotes. Somos diminutos, frente à imensa solidão de uma multidão de desconhecidos. Mas nosso maior desconhecido está dentro de nós. Os limites, as conformações, os vacilos: andamos na beira. E vamos nos implodindo em um tufão de paranoias, cada qual reflexo de uma lembrança.



28 de maio de 2014

A Procura e o Encontro

"O velho senhor se cansou da caminhada e sentou à beira da estrada."

Andamos, andamos, e colhemos flores desta vida tão amigável. Se seus dias são de sorriso, também são os meus, e manteiga quente escorrendo no pão todas as manhãs. Por onde passo vemos senhoras e chapéus que se cumprimentam. No bailar, todas as vidas seguem como girassóis, a rodar em acompanhamento à luz.
Mas passarão dias e dias mais felizes e algo soará estranho. Por mais que se ande, não se sai do caminho, que é um eterno andar e cujo retorno só nos leva ao mesmo círculo. Ele, que andou mais que nós, já se foi e, ainda sim, não encontrou o que procurava.
Meu cigarro queima no cinzeiro mais próximo e me diz “É uma perda de tempo”, e o velho jazz da big band alerta que não há mais rota possível. A procura só acharia o encontro se se andasse para trás, como se regredíssemos o tempo sem que, no entanto, houvesse um regresso. Como voltar do avesso.
E, no entanto, celebramos a tecnologia e fazemos louvores aos botões, às luzes. Estamos encapsulados nessa modernidade sintética e não há escapatória. Os que tentaram morreram, caminhando. Sabemos que ele andou buscando, sem no entanto encontrar.
No bailar, todas as vidas seguem como girassóis, mas a caminhada conduz aos mesmos questionamentos. À busca de soluções, entulhamo-nos com os significados que encontramos pela jornada.


10 de março de 2014

Anos depois, aquela estranha visista


“Hoje não escrevo para mim, não escrevo por mim, não penso, não sinto, digito, transfiro, enojo-me, tenho repulsa, sou atraído, ensaio, caio, arrasto para eles.”


(Foi aceso o último cigarro do maço. O maço não será o último, mas o ato é simbolicamente valioso. Porque são onze e cinquenta e nove de um domingo qualquer, e até amanhã não haverá mais cigarro que supra. Mas isso, isso são notas apenas, e nem deveriam estar aqui. Eu tento não me por aqui, mas tudo isso são pedaços meus, refletidos nos movimentos histéricos feitos nas teclas. Isso tudo sou eu. Embora hoje eu não escreva para mim. Retiro-me.)


Anos depois, aquela estranha visita. Ao tempo passado de quando você foi feliz e não soube. Aos desejos suprimidos, reprimidos por uma necessidade intensa de carinho. Misericórdia, Senhor! Eu travo esse diálogo comigo, que não é um monólogo porque, eu sei, há alguém neste interior que grita, e pede pouco, pede um facho de luz, um lugar ao sol, por minutos, por momentos. Mas está sufocado, e nesse diálogo de raiva, aqui, bem aqui, sobram cinzas e uma garganta engasgada, que dói ao gemer.

Mas ninguém nunca foi feliz realmente. Porque a promessa do dia melhor é para amanhã. Quando poderemos repousar a cabeça confortavelmente no travesseiro, sem problemas e sem medo. E você consulta seu relógio, faltará muito para o próximo dia? Durmo hoje porque quero que o amanhã chegue logo, e minha rotina se faz entre uma ou outra espiada no calendário, está logo ali, o dia do sorriso verdadeiro, que se estenderá de orelha a orelha. O dia que vou me olhar no espelho e sentirei tesão pelo que vejo. O dia em que estiver adornado conforme meus planos, com as chaves certas no bolso. Até lá, sou escravo da ilusão, e gastamos os dias com promessas.

O tesão e a vida são um só, e seguem da mesma maneira. A vontade de possuir é a vontade de destruir, e de se autoconsumir. O que eu faço com o corpo do outro é destruição, mas gosto e gasto-o a meu bel prazer, até que jorre por toda a cama este esperma barato com odor de pecado. Depois do consumo, o momento passageiro de conforto, do ápice. A cama é arena de batalha, e o objetivo do jogo não é se satisfazer, nem satisfazer o outro. É a batalha do ego, e vence sempre a performance. E nesse vai e vem passam-se corpos, tempo, sentimentos debulhados e lençóis lavados, cheirando a amaciante.

Anos depois, aquela estranha visita. Por que tendo vivido tanto, parece que andamos tão pouco? Por que, tendo passado tantos dissabores, parece que construímos coisa tão miserável? Até então não se viveu plenamente? O mais doloroso é quando se anda próximo ao fim, quando já se vê o fim do horizonte, e carregamos a sensação de ingratidão conosco mesmos. Por que fizemos de tamanhos braços e pernas um legado tão inexistente? Por que não gritamos e vibramos de verdade? Por que engolimos tantas palavras boas e ruins, e por que perdemos tantas horas para rir da desgraça do próximo, enquanto dançávamos cavando nosso próprio túmulo?

Aquela estranha visita, anos depois. No nosso íntimo, um coração sangra, e é dor genuína. Infelizmente, mais genuína do que fomos em nossa existência toda. E ninguém nos cobrará além de nós mesmos. E pagaremos o preço, amargo, por cada ensaio, por cada simulação. Quem titubeia não vive, quem ensaia não vive, quem se senta no muro não vive. Assiste, no máximo, à vida que gostaria de ter, observando-a e invejando-a no outro.


A agonia está no quarto, escuro, e sozinho, com cheiro de gozo ainda quente na coberta e uma música mal sucedida no rádio da sala. Anos depois, aquela estranha visita ao que poderia ter sido tão maravilhoso. Mas não passou de uma maquete metida numa bolha.