João desligou a
televisão, já chega, já chega por hoje, inconformado com a
política. Na cozinha, jogou uns pães velhos na frigideira gasta,
gasta como estava sua manga comprida puída e cinzenta, tirou café
quente do bule. Fumegando.
Maria, ajeitando a
gola da camisa, repassava o ferro pela terceira vez, tarde chuvosa de
terça-feira, olhava pela janela e via carros e sombrinhas nas ruas,
mas por dentro a agitação de sua vida estava tal qual a emoção de
esfregar o metal quente sobre a roupa teimosamente amarrotada.
Dois quarteirões
dali, na Panificadora da Avenida, de roupas molhadas, Marcos se senta
e pede um misto quente. Está frio na rua, e ainda traz ele a barra
das calças encharcadas. O relógio funciona mas é difícil precisar
os minutos. Porra de relógio vagabundo, pensa, ao ver que a água
que havia entrado por dentro do visor evaporara pelo calor do braço
e agora tudo estava embaçado. Mas trazia um regozijo profissional e
dificilmente, naqueles dias, abaixava a cabeça. O horizonte se
mostrava ensolarado em suas perspectivas.
Com a flanela e o
frasco de álcool na mão, Elaine fazia movimentos circulares nas
vitrines da boutique, tentando remover as marcas dos dedos dos
clientes que não sabiam olhar com os olhos os ternos em promoção,
os sapatos que, ela sabia, despedaçariam as solas em poucos meses,
produtos velhos de estoque que justificavam a liquidação. Elaine
era absorvida pelo entra e sai dos clientes alvoroçados e desde que
assumira o trabalho na Autónomo tinha menos tempo para repensar sua
trajetória de moça radicada na capital-cidade-promessa. Coisas da
rotina.
Por um telefonema,
Marcos e João se reencontraram. João, que tentava levar a vida de
escritor e andava meio mal sucedido naqueles meses, fora alguns
artigos pagos para jornais e os bicos como revisor de texto e normas
para monografias. Marcos, executivo promissor, oito anos mais novo e
notadamente mais visionário.
Maria era dona da
farmácia que lutava por sobreviver num bairro suburbano ante o
avanço cada vez mais agressivo das redes de drogarias que demoliam a
concorrência de modo avassalador. Vivia na sobreloja, dividindo sua
atenção com os afazeres domésticos e Jaciara, o peixe cor de rosa
que ganhara no bingo beneficente da paróquia.
Uns nove anos atrás,
se não me falha a memória, Maria e Elaine se formavam na mesma
turma de graduação. Do interior do estado elas seguiriam, separadamente, rumo à
mesma cidade, sem saber ao certo o que as esperaria. Maria aproveitou
da prática em outras farmácias e poupou a ponto de montar o próprio
negócio. A frieza da nova cidade a fez forte e boa administradora.
Elaine amargava o descaso com suas próprias escolhas, que, numa das
várias instâncias, a levaram a desperdiçar a mocidade com uma
formação pela qual nunca se interessou.
Marcos 25, João 33.
Conheceram-se num festival de arte, tempos atrás, imensidões de
realidades atrás. João era um entusiasta, Marcos titubeava entre
escolher o Direito ou a Engenharia – mundos distantes como se um se
chamasse ele mesmo e o outro, João. Foi um romance de fim de semana
que se estendeu por alguns meses, com toques de produção
norte-americana aqui e ali. Os sonhos juvenis que tinham terreno para
crescerem, numa certa irresponsabilidade que acompanhava o entusiasmo
explosivo de João e a pouca idade de Marcos.
Elaine nunca havia
tocado uma mulher. Até aquela semana, em que se permitira sair de
sua vidinha interiorana para conhecer um evento que chamavam de cult,
era quase a moça boba que admira os homens que lhe passam na janela,
com exceção de que estávamos lá no século XXI, e esses
romantismos não existem mais.
Samba, cerveja,
garoa. Frio. Volta pra casa, todos meio altos, frio, abraços. Casa grande,
alugada, alguns remanescentes da festa daquela noite, gente aqui, cômodos vazios ali. Cerveja, funk,
música eletrônica. Risos, boca de Elaine sendo tocada pelos dedos
adocicados de Maria, volúpia, medo. Carícias que jamais seriam
tomadas como cristãs, 'Deus me perdoe' num íntimo abafado pelo
desejo, curiosidade e pavor. Depois daquela noite, Elaine conheceu os
seios rijos de Maria e a crueldade do autojulgamento e da punição
da criação tradicional. Fechada em si, mal ousou desafiar palavras
à colega de sala nos anos que viriam. Quando muito, olhares que se
prolongavam ao encontro da outra e logo eram tolhidos pela mente
perversamente moral.
Maria, que não
tinha mais idade mas sempre fora mais desligada, desplugada das
convicções morais, usava roupa relaxada e não escovava os cabelos.
Também não se importou – ou não se mordeu – com o afastamento
da affair de uma noite. A vida valia mais que se prender a
acontecimentos e pessoas conflituosas.
O tempo passou e as
birras de João se tornaram mais frequentes. Amargo e extremista,
deixou que sua visão do jeito de ser das coisas obscurecesse o retrato que
tinha do seu par mais juvenil. Marcos não tinha perspectivas, ele
dizia. Era jovem demais, inocente demais, perdido demais. Apolítico.
Marcos, que não queria ser direitista ou esquerdista, nem estava aí
para ideologias e preferia se concentrar nos seriados que a TV paga
do pai lhe oferecia, sofreu mas não entendeu quando a frieza de seu
namorado se instalou de vez. Chorou, secou a fonte, diminuiu-se, mas
não pode evitar um fim prenunciado.
Deus que me perdoe,
lembrou Elaine quando adentrou a farmácia atrás de um ansiolítico
qualquer que a fizesse dormir mais de quatro horas por noite. As
olheiras profundas as tinha encobertas por espessa maquiagem, com
abuso de um pó de tom canela como sua pele. Um nó na garganta
contorceu a voz de Maria, Maria do ferro de passar roupa e da vida
adulta amarrotada e sem graça como uma camisa social.
Marcos, com uma mão
no misto e outra no jornal do dia anterior, deteve-se por instantes
na análise política que buscava mostrar as tendênciasvnegativas
que viriam com a possível vitória da oposição naquelas eleições
de outubro. As opiniões rasgadas o atravessaram tanto quanto a
assinatura: João Queiroz Martins. De repente, naquelas palavras
duras, viu-se um estudante de cursinho, bermudinhas apertadas e
mocassim.
João lavava o bule
e secou apressadamente as mãos para atender o telefone que tocava.
- Alô?
- Alô. João?
- Pois não, é ele.
- Jo... João. Sabe
quem está falando?
- Não, não faço
ideia. Quem é? É pra monografia?
- É o Marcos.
- Marcos?
- O Marcos de sete
anos atrás.
- O... oi? Como?
Na noite seguinte e
nas que se seguiram, Maria passou a se esmerar mais nos cuidados com
a casa. Elaine pediu aviso e demitia-se da Boutique Autónomo, que,
num passado distante, já fora referência em moda masculina, numa
época em que a capital ainda ensaiava passos de cidade grande.
Num passado menos distante, Elaine se martirizara com concepções
morais que trazia da família patriarcal que a gerara. Agora, a vida
encontrava meios para se fazer valer, e, diluídos nos impasses do
cotidiano, dois pares de olhos pareciam encenar um conto de fadas,
meio às avessas e com referências que pareciam originárias duma
teledramaturgia. Maria e Elaine, cobertas, mãos atadas, dormindo suavemente.
Depois
de uma noite que entrava na madrugada, aquecida pelos vinhos baratos
do escritor puído, pelas ices do administrador de olhos claros e
umedecida por lágrimas e contestações, Marcos seguiu para casa
num táxi prateado. Na mesa de João ficava um cartão de negócios,
que lhe podia valer por ter um telefone e e-mail de contato, mas
jamais seria utilizado. O menino crescera e o entusiasta político se
apequenara. Sem intimidações ou trocas de farpas, puderam ver que o
tempo que mudara as perspectivas de ambos também secara o terreno em
que um dia floresceram esperanças de uma vida hollywoodiana. No
deserto daquela distância, somente lágrimas poderiam matar a sede, mas eram salgadas e o solo não se faria fértil novamente.
Quando
fechou a porta, embasbacado pelo reencontro, pelo acaso, pelas
mudanças que via operadas em Marcos, pela forma fria com que um dia
havia ensaiado um fracasso intelectual no então pueril companheiro, levantou
as mãos para o céu, fechou os olhos atormentados e vermelhos e
gritou em
silêncio. Pudesse ele, naquele exato instante, ser
ouvido pelos anos e anos que se passaram.
Naquela noite, dormira com o rosto marejado, pensando na mediocridade que a vida podia assumir e como foram os caminhos para chegar até ali. Nas noites que se seguiram, o torpor diminuiu e os tormentos do próprio cotidiano cuidaram de apagar aquele êxtase de uma noite, e a vida seguiu-se.
(imagem: Reencontro, de Iamara Saute. Disponível em http://iamarasaute.com.br/)