28 de fevereiro de 2018

O olho na palma da mão

“A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz. (HASSEL MENDES, F. R.)"


[N.A.] Hoje preciso escrever com as mãos em sangue, os pulmões em fúria, expelindo fumaças brancas, densas e condensadas. Hoje preciso botar panos de chão por debaixo das pálpebras, escorar o queixo como se houvesse escora – não se engane, não há – e olhar para além de mim.




O tempo é medida de contagem repugnante e admirável, tão completo e complexo em si que permite-se, assim, ser ambivalente, esconder, tragar, engolir, abraçar, escancarar, despejar tudo o que vemos, ouvimos, tocamos. Da forma como o vemos, ele se esvai pelas mãos e o ato de envelhecer – cada comemoração de aniversário, cada novo Ano Novo – vai se transformando, assim, em uma íntima batalha com as emoções mais trancafiadas, pois pela racionalidade não é possível travá-la, sobre como retê-lo.

Mas não há mãos, não há milhares de mãos, braços, colos, que possam refutar o que contabiliza a alegoria do tique-taque dos velhos relógios de parede. E sentamo-nos nas nossas janelas, nas reais e nas imaginárias, e debruçamo-nos em nossas sacadas, e contemplamos nossos porta-retratos, e vemos que a visão não vai mais tão longe. Em que ponto a contagem do indizível tornar-se-á uma contagem regressiva? Regressiva para o quê?

Nós nos matamos todos os dias, a cada vez que murchamos nossos corações por uma experiência que nos provoca um pequeno corte, um rasgo, uma passagem. A perda do contato, a quebra do vínculo, o momento exato em que as pontas dos dedos deixam de poder sentir o tato das pontas dos dedos de outrem – ah, é a hora em que violentamente nos jogamos no canto, costas na parede, e lentamente nos encolhemos até que a cabeça esteja protegida pelos joelhos, onde, escondidos, os olhos estão seguros para debulhar as lágrimas que a garganta, em nó, já anunciou.

Por que – e essa não é uma pergunta retórica – aparentemente nunca vivemos tudo até a exaustão? Sem extinguirmos a chama que permanece, estamos indo em direção a um paradoxo, pois, por um ponto de vista, acabado o fogo, morreu a vivacidade da relação, o ponto de combustão de ideias, risadas, lágrimas, compreensão mútua, desarranjos por e de amor. Não extinto o fogo, da mesma forma, irá pairar sobre nós, quando o distanciamento se der – e ele inadvertidamente ocorrerá –, o desejo doloroso e ardente de que tudo pudesse ser revivido, pois o seria melhor, com mais tempo, com mais atenção, com mais olhares perdidos na infinitude espiritual do outro. Teria sido diferente, ou essa é a ilusão que criamos para não confrontarmos o findar de uma era, uma época, um momento breve – que seja! – e intenso com o qual a vida nos presenteia?

Há estalos que não podemos compreender, e se amamos, deixamos que seja feita a vontade de quem lá está por pedir. Há cuspes que precisamos engolir, há expressões que precisaremos disfarçar, há momentos de fraqueza que serão mascarados com um semblante falso, há desconforto do que fazer com as mãos que pedirá um cigarro para passar menos percebido. Tudo o que é vivido o deve ser com a gravidade a que dedicamos o fazer religioso. Mais que fé, é preciso viver com devoção. Os fantasmas desesperadores das partidas não serão, nem por isso, sepultados. A cada nova alegria genuína, o pavor de sua ausência. E cada um seguirá sua história, com um laço desconexo que será para sempre selado, terminando um uma memória confortável, triste, divertida e orgânica.

Viver com devoção, eu repito porque preciso, trará unicamente uma certeza – da qual desconfiaremos a todo o tempo – de que fomos o que podíamos ser naquele momento. Mas nada é substituível, apenas complementar, no vale de memórias, afazeres, rotinas, amores, abraços, lágrimas, sorrisos e vitórias que constitui nossa história, sedimentada a cada novo passo, e que torna a cada um de nós essa finitude física que comporta o universo. A vida sabe o que faz. Ela sabe o que tira. Ela sabe o que traz.