7 de junho de 2022

Um dia você vai me agradecer por tudo


You don't see me now,
I don't see you back.
One day I'll be fine with that.

[Sharon Van Etten]



Dez anos se passaram e aqui estamos nós, sentados e silentes, fitando nosso futuro diante das palmas das nossas mãos, espalhadas à espera. Espalmadas como quem pede, sem saber o que, de quem, irá receber. Alguém. Tão longes, tão distantes, tão perdidos. As palavras que acho que me faltam, eu as encontro em outras sensações. Tantas substituições a troco de nada, tanta perda de tempo. Tempo que passa, implacável, abalando fundações e causando rachaduras irreparáveis nos sentimentos, que minguam. As esperanças minguam.


Eu uma vez te olhei pelo espelho, e hoje só vejo o espectro do eu que procurava se encontrar em você. Se encontrar com você. Participando de você. Se encontrar em um nós. Eu uma vez te olhei pelo espelho e desejei que o você que eu via pelo reflexo se eternizasse ali. Sem envelhecer um dia a mais. Sem envelhecermos um dia a mais.


Dez anos se passaram, e a simplicidade de fazer planos tão singelos não existirá nunca mais. Se desintegrou em meio a esse tempo que me rodopiou sem que eu percebesse. Sem que eu percebesse, ao menos, da forma tão dolorosa que é. Metáforas e palavras bonitas, nada conseguirá descrever como é estar tão dentro do centro a ponto de não conseguir sentir o movimento que a vida faz, em coletivos de dias, ou de meses, ou de anos. Ridiculamente domesticados em folhinhas de calendários. E nesse movimento, que só conseguimos contar por ciclos de repetições idênticas, acontecimentos que nada têm de parecidos passam por nós, ultrapassam-nos, perpassam-nos, nos fazem de bobos.


(Eu me cansei de explicar, como já te disse, aos que ainda não perceberam como é se sentir passado para trás pelos dias. E para poder se sentir assim, é preciso ser também privilegiado. Privilegiado para poder ter consciência do desprivilégio que é perceber a vida de uma posição confortável, em que se tem outras preocupações além de desesperadamente sobreviver. Seria melhor não ter nem esse tempo e nem essa memória?)


Eu uma vez te olhei dormindo, outra vez sorrindo, e desejei que sua aparência, a que eu formava em minha mente por meio dos meus olhos, do meu olfato, das pontas dos meus dedos, jamais mudasse. E desejei que seu jeito despojado e ardente, que em mim causava um torpor, uma paixão que beirava o insuportável, jamais se desfizesse em mim. Eu desejei que esse encontro – entre o que você dizia e se fazia ser e o que eu interpretava do que era você em sua expressão e realização plenas – jamais, em hipótese alguma, terminasse.


Eu desejei a plenitude.


As esperanças minguam. No lugar, vão-se lentamente sendo substituídas por uma resignação mórbida, de quem se transforma no cidadão comum que cantava Belchior. O da vida de por favor/ obrigado. O da morte fútil, indiferente. Esse é ao mesmo tempo o maior terror e a maior condenação que pode ter alguém que, como nós, já desejou a grandeza, a grandeza exponencial, que se expande mesmo sem nada, dentro de cada um. Que explode entusiasmo. Que implode o mais selvagem de cada um, em direção ao outro.


Um dia vou acordar e descobrir que você se foi. A morte será simbólica ou atestada, medicamente comprovada. Qualquer uma delas será tão dolorosa quanto possível. E será enterrado não um corpo, mas um novelo não quantificável de fios com nós feitos e desfeitos, puídos ou preservados, a depender do segmento. Da época de tecelagem de cada trecho. Um carretel de tudo o que era para ser e foi malfeito, foi incompleto - não foi, enfim. E a imagem, congelada, que eu quis preservar, terá perdido, agora para o sempre, sua ancoragem em algo tangível.


Esse desejo é cruel não por ser egoísta, mas por ser irrealizável. Dez anos se passaram, e o que temos nas mãos é tão pouco a ponto de não termos mais sequer as mãos um do outro, em afagos sinceros que, tão rapidamente, viravam em volúpia. Descarada e descansada volúpia. E tudo isso não é sobre você, é sobre você e todos os que vieram e se foram depois, quando tentei que o sentido que havia quando era você se recompusesse. Mas você não fazia mais sentido, e os outros não tinham sentido.





Um dia, ainda, eu vou te agradecer por tudo.




[Imagem: Pixabay]