24 de maio de 2013

Quando chegar o fim


“Estou possesso. Não estou irritado, nem furioso. Estou possesso.”


Quando chegar o fim, quando chegar o dia do a deus, onde estaremos sentados? Quem virá ao meu auxílio, quem virá pedir meu abraço? A quem irei direcionar olhares desorientados que clamam por socorro? Fará sentido desesperar-se sozinho? Fará sentido não estar completamente entregue à solidão? Afinal, por que definições? Haveria meio de definir este cansaço mental, essa mão levantada por cima do lodo pantanoso? Quem está lá fora?

A cena é escura, a cena é profunda. Tudo será eco, mas não se pode precisar onde está a fonte. Por onde gritam, e por quê? Não fará mais sentido a gramática, nem meus papeis pendurados na parede, cuidadosamente emoldurados e improfanáveis até então. Mas tudo é profano, este solo é manchado de sangue. Quem não é? Vertigem, vertigem. Estarão todos em queda livre, mas quando é o fundo do poço? Qual o maior castigo para a mente infinitamente criativa? Pesadelos, o que são? Ruídos, ecos, ouvidos em explosão. O fim estará próximo, realmente?

Estaremos todos à deriva, esperando por um contato. As estátuas se movem, são bocas de pedra a palpitarem, mas o que dizem? As maiores se movem pelo pasto verde, tudo pode ser verde no fim, mesmo que a sequidão tome conta de nós por inteiro. Nenhuma lágrima escorrerá, a boca seca, a saliva encruada na língua, gosma. Quem pode se dar conta do fim quando o encara pela face?

De seus olhos saltam muitas cores, flashes pulsantes, é como o coração. Sangue pelo corpo, cores pelas mãos. Peles multicoloridas, estamos verdes, brancos, amarelos, verdes novamente. Quando o fim chegar, e se você estiver em sua sala, observando tudo pela tevê? Vejo muitas luzes, ele diz, mas não encontro resposta. Vejo muita claridade, mas o interruptor foi absorvido pela parede. E agora? A cena é escura, mas o que responder se a escuridão for, paradoxalmente, luzes derretidas escorrendo por suas paredes, tragando árvores, parque e gramas?

Quando o fim chegar, quem se levantará para acudir? Para onde correrão os bons, ou tais não passam de lendas que contamos, dia após dia, para podermos colocar a cabeça no travesseiro e conseguir ressonar? Você está numa cidade deserta, e o dia é muito claro. A luz te queima, penetra pelas pálpebras, mas o sol não está lá. Tudo é branco acima, e abaixo as pedras ardem. É um dia agradável apesar de tudo. Mas onde estarão todos? Você está numa praça deserta, há poucas árvores e um chafariz morto. Dentro, apenas folhas secas e luz. Olha para os lados, mas ninguém vem. E quando o fim chegar, quem sabe se ele não será uma completa clausura involuntária? Como anunciar que tudo está se acabando se não há quem possa ouvir? Talvez, por fim, você se resigna e senta no banco. E lá irá permanecer, solitário, à espera de um transeunte. E passarão séculos. E mais quantos outros séculos passarão até que possa perceber que essa é, em verdade, sua danação.

Quando o fim chegar, poderá tudo escurecer-se, e haverá outras cores, cintilantes. Tudo cintila, num universo de dimensões e propósitos sempre discretos demais. Quando enlouquecer, quando deitar-se ao chão e cravar as unhas na terra, quem saberá? A cena é profunda, mas a luz é alva. Há gritos no céu, mas são sons sem boca. Há uma alvura angelical, mas te queima e tudo é escuro ainda.

Estamos todos à deriva, ávidos pelo contato.



9 de maio de 2013

O espelho (ou Dia de redenção)



I

Começou cedo o dia, com um bandolim tocando à porta, mas ninguém queria entrar, não. Era um desses viajantes aí, que vivem a vida como se amanhã fosse a morte. Desses aí, que festejam sem esperar que a alegria seja recompensada. Porque tem gente que é assim, né? A alegria se estampa no rosto, mas não é ela de verdade ali. É um disfarce, inconsciente, talvez, como que se o seu uso fosse atrair alguma felicidade mais... sólida. Deixemos os fingidores de lado. E os festejadores também. Em resumo, o dia começou com um bandolim tocando à porta, freneticamente, mas logo sumiu, foi seguir o caminho.

Depois, o cheiro do café. Não vinha dali, daquela cozinha, visto que, além do vivente que agora acordava, ninguém mais habitava a casa. Vinha doutras cozinhas, talvez um apartamento, da sala de espera do consultório odontológico duas casas ao lado. Da sua cozinha, não. Uma vez desperto, contudo, tratou ele também de fazer o seu próprio. Coçava a barba, o cabelo espetado, desesperançoso de um corte ou um pente que fosse, o rosto ainda abobado de sono. E o café coando.

O sol atravessava ardente as janelas da cozinha e da copa, mesmo que fossem ainda oito da manhã. Oito da manhã, oito da manhã. Em tempos não muito distantes, já estaria na lida a estas horas, conversando, trabalhando, fazendo valer a manhã. Mas não agora. Agora, pelo contrário, oito da manhã era cedo demasiado. E era estranho que o sol estivesse tão forte tão cedo. O contraste da luz com a fumaça do cigarro recém aceso tornava a imagem do cômodo densa, espessa. Dormia de blusa de frio, naquele tempo de início de inverno. O frio lhe castigava tudo, inclusive os pés. Blusa de frio e cuecas, era tudo o que costumava vestir durante as noites. Largou o cigarro no cinzeiro pra poder lavar uma xícara.

O tempo pode mudar tudo, ainda que nem mesmo um metro seja percorrido. O tempo mudara muitas coisas. Do fundo do sofá recoberto de colchas, colocadas ali mais para disfarçar o envelhecimento do móvel que pra qualquer outra coisa, ele dobrava compulsivamente as pontas das mangas da blusa azul-marinho-gasto, isso que era uma mania recém-adquirida. O ócio nos faz adquirir manias. E medos. Quando não ocupava os dedos com este artesanato infrutífero, ocupava-os na boca, a cortar as cutículas com os dentes, ou com o segurar do cigarro, da alça da xícara. Ali, no sofá, de pernas cruzadas e olhar abstraído, ainda conseguia se sentir um deus. Meio decaído, mas um deus.

Não era o fracasso que lhe preocupava. Talvez fosse, talvez, mas não dentro do que ele percebia como seu mundo de agora. Não era fracasso o nome daquilo. Era um êxtase infindável, mas que de interminável tornou-se cíclico. Como as lágrimas, como o olhar que vagueava em busca de sentidos. Sentidos. Não se tratava de morte, nem de sensações físicas. Se era morte era antes um falecimento do espírito. Sentidos. Olhar lânguido, quase bêbado. Fumaça, odores, panos velhos, sentidos. Cíclico.

O tempo se tornava cada vez mais abstrato. Podia ser medido em relógios, e havia muitos em paredes variadas, alguns fora do horário, alguns sem pilha. Podia ser medido pelas folhas do calendário da padaria, distribuído como brinde todos os finais e inícios de ano. Mas eram todas medições abstratas. Porque só se mede a passagem do tempo em situações concretizadas. Mede-se pela intensidade imprimida na vida. Não, não se conta o tempo em dias ou anos, mas em vitórias, em eras de bonança e, inevitavelmente, em períodos de desgraça. O tempo se tornava abstrato para o vivente daquela casa. E, no mais, a única coisa que lhe sobrava fazer era literatura barata.


II

Depois da tormenta, o céu limpo não veio. Foi-se-lhe a mãe, o emprego e, com este último, a promessa de uma carreira mais sólida, que parecia já conquistada e se desfez em pó. Estava perdido como cão sem dono, e o dinheiro escasseava. Ele estava preso ao passado, preso àquela casa vazia, que, com ele ali, com este novo ele, era mais vazia que se desabitada fosse. Foi tormenta caída duma só vez, e a ventania dolorosa o dobrou. Agora, mais que o dinheiro, que os laços parentais, que a rotina do trabalho levado por mais de nove anos, por pouco dez, fora-lhe embora o sentido. E com o sentido, o sono, o senso de tempo, os motivos para pensar as oito horas da manhã como meia-idade da manhã. Esvaiu-se tudo. Tinha manias agora, manias e literatura barata.

- Quem sou eu!?, bradou numa noite, desesperado, com os cabelos alvoroçados, olhos em fúria, olhando pela janela. Ele, que se perdera onde dificilmente alguém poderia o encontrar. Perdera-se em si. Apontava os braços para cima, como que se esperasse alguém para levá-lo, para mostrar algo. Ele perdera-se por completo. A dor do outro é sempre alguma coisa distante, é sempre alguma coisa sintética para nós. A depressão é como uma porta. Desavisado, invariavelmente se caminha em direção a ela. Não é convidativa, não é esclarecedora. Mas há algo de involuntário ali. A porta estabelece-se diante de ti e, duma ora para outra, é o único caminho possível.

- Quem sou eu!?, gritou novamente. Não estava mais na janela. Estava parado, sentado na beira da cama, cotovelos sobre os joelhos. Olhava conflitante o espelho, via seu próprio conflito naqueles olhos acastanhados, rebuscados, enervados.

- Quem és tu? Quem és tu, meu caro?, respondeu o espelho, falando pelo reflexo, e era como uma resposta que partia de seu interior. Ou não?

Aquela resposta, em forma de pergunta, era retórica, no mínimo. Pois que o espelho o acompanhava há quase uma década, foi comprado com seu segundo salário quando assumira o cargo de editor. O espelho, indubitavelmente, sabia de tudo. Porque grande parte de sua vida, ou ao menos dos picos dela, passou-se naquele quarto. O espelho a tudo via. E, quem sabe, por que não?, a tudo ouvia também. Era, então, uma provocação? Era um auxílio?

- Fui eu quem falou isso?

- Depende. Olhe pra mim, o que tu vês? Tu? Eu?

O homem enxergava tudo aquilo desconfiado. Cruzou as pernas sobre a cama e firmou o olhar. O reflexo o acompanhava instantaneamente em todos os movimentos.

- Não me importa realmente se fui eu ou não. Não sei quem sou e pouco tem me importado lembrar que seja meu nome.

- Porque não é mais teu nome, decerto. Ou porque, talvez, tu já estejas deteriorado nesta casa e não passes de um fluido, de um vapor condenado a vagar. Tu, não sabendo mais da própria história, a mim desabilita, e nem sei mais se reflito alguma coisa.

- Ou se sou eu mesmo o próprio reflexo, perdido sem um referente a fazer menção.

- Olhe para esta merda de vida. Esta existência medíocre que tu lutas a todos os momentos para fazer continuar. Não tens mais sentido algum, vagas pela casa, mofo!, mofo és tu, agora.

E lágrimas caiam da face dele, ainda tentando não se abater.

- Chega! Chega! Não quero mais ouvir, não quero saber de nada. De nada!

- Mas se és tu quem fala, que posso fazer? Não percebeste que te acusas, a ti, a ti mesmo? Eu não falo, jamais falei-te uma palavra sequer. Tua mente fala, e tu escutas estas vozes porque estás perdido dentro de um calabouço. Tornaste-te um febril, não consegues mais desvencilhar-te das vozes que ecoam aí. Quem és tu, quem és? Responda-me, para que eu não pense que enlouqueci e estou falando com o vento.

- Por que me mutilas assim? Por que eu te ouço ainda, demônio? Por quê? Por que eu não arrebento essa casca, essa doença, por quê?

- Por quê?

- Porque eu não sei onde estou. Por que eu não sei onde estou?! Que foi feito de meus planos juvenis, que foi feito das minhas ideias?

- Tu as perdeste. Tu te esqueces de que o tempo não para jamais, é ele quem te engole, pouco a pouco tu sucumbes a ele. Perdeste teu tempo a procurar pelo futuro e o futuro não te chegará jamais. Ou podes ainda considerar que é este o teu futuro; é isto que tu sonhavas?

Ele torcia os dedos, estalava-os nervosamente, fumava, tossia, fumava, apertava as têmporas. Chorava como uma criança a quem lhe houvessem tomado o brinquedo.

- Como te foi levada a mãe? Como passaste os últimos anos com ela? E os amigos teus, homem? Foi por incompetência que perdeste o trabalho?

- Incompetência...

- Trabalhaste por uma década para aquela porra de jornal pra não conseguires um merecimento além da demissão? Que vida ingrata.

A demissão, a mãe, os esporros, as noites sem dormir, os desgastes amorosos pela falta de horário, a mesquinhez a que fora se acometendo, as unhas amareladas, o espírito amofinado que se sobressaíra após tantos anos e que o vencera, enfim. Era agora aquele ali, escritor frustrado, solitário de si mesmo. E a solidão é um monstro que nos abraça, sem que possamos tomar ciência. Tapa-nos os olhos até que nos acostumemos e, !, parece que foi sempre assim, não? Quem, afinal, reconhece-se em si, em si somente, longe de outros e de seu próprio reflexo? Quem sabe quem é sem necessitar de limites sociais, sem se medir pela ação do outro?

Não se sabe exatamente qual foi o destino do nosso homem. Há quem diga que ele tenha se matado, embora morto já estivesse. Outros, que ele se consumiu frente ao espelho, tornando-se indistinguível de seu reflexo. O certo é que jamais saiu daquela casa.




7 de maio de 2013

Não quero mais amores


(Dedicado a três amigos)


Não quero mais amores. Amores, seus lamentos, suas dores. A paixão arrebatadora, o início, o meio sôfrego, mole, morno, e o final libertador tanto quanto aterrador. Não os quero mais, nada. Não quero ter de pensar em ninguém, não quero andar em meios-fios de alguma coisa. Não quero mais nada. Não quero mais soluços, não quero lágrimas e nem promessas. Estas muito menos.

Não quero corpos. Minto. Quero-os. Um de cada vez, talvez até dois ou mais. Mas não os idealizo, não os quero esculpidos. Quero o corpo de qualquer um, quero uma carne qualquer, natural. Que ao menos este querer e o objeto querido sejam naturais. De resto, nada mais espero. Não quero esperanças de um amor, não quero idealizar cabanas conjugais em campos verdejantes. Talvez eu queira me esfolar no mato, chafurdar no lamaçal, sujar-me de sexo, sentir o odor nauseante de uma pós-noite. Mas é só.

Estou cheio. Cheio de rancores, de dores nos pés (ah, meu Deus, só pode ser o frio, o frio de junho!), cheio de mediocridade. Estou cheio de fumaça nos pulmões também, mas desta não reclamo, ainda que um dia possa ela me levar à tumba. Problema meu. E dela. Estou repleto, estou até a tampa. E o pior? O pior é que não consigo me despejar em lágrimas, este abarrotamento não se esvai pelos olhos, nem por possíveis gritos. A minha única esperança é escrever. Redigir, revisar, ler, apreciar, desgostar e, por fim, concordar. Isto, e só, distrai-me ou, de alguma forma, recompensa-me.

O tempo corre, ainda que não o possamos ver sempre. Um ano mais, novas rugas, menos fios de cabelo, promessas a serem pagas. Sabe o que diminui minha aflição? É pensar que este ano, talvez, terei modos de cumprir a metade das minhas [promessas]. Uma porção de amigos a visitar, de lugares a conhecer, de livros a serem lidos e resenhados, mentalmente ao menos. Tenho de seguir vibrante, cuspindo flores e semeando pelo caminho. Mas não é fácil. Ainda quero meus corpos. Mesmo tendo consciência de meu fracasso como objeto do desejo. Ainda assim.

Tenho frio e é péssimo tê-lo. Quero meu rio branco, além dos corpos e das flores e da Gal. Ainda que eu não possa tê-lo como morada. Que seja ele, então, meu amante apenas, e que eu possa visitá-lo esporadicamente, sorrateiramente, com a inocência pueril da infância. Quero também que chegue uma tal manhã, e esta eu sei bem defini-la, e que com ela eu tenha esperanças renovadas de que batalhar é, por fim, compensador. Quero, sobretudo, meus sorrisos mais espontâneos de volta. E, por favor, que seja logo.