16 de março de 2013

Quando a consciência fala

É. Acho que chegamos ao fundo do poço, disse, surpreso, o espelho ao homem que o fitava com angústia.”


Vou ser sincero e te falar que não estou bem. Que digo o que vem à cabeça e isso é uma autoproteção. Vou ser direto e falar coisas que não irão agradar. Mas, afinal, quem se importa em ficar agradado? Eu penso que certas trevas crescem como hera nas paredes, e tais somos nós e nossas relações descuidadas. Mas pregaram como praga e não me vejo mais em você, e nem você me reconhece mais. Somos escuros um ao outro, temos nulidade nos olhos. Um grande vazio que suga, transformamo-nos em parasitas de nós mesmos. Um olhar, uma cartada. Fulminante.

Vou abrir o peito e dizer que não sou herói de ninguém. Mas pretendi ser, um dia, um dia que é distante agora. Vou abraçar-lhe e segredar em seus ouvidos coisas horripilantes que andei pensando. Mas é assim a vida, feita de reflexo do que imaginamos ver que, desdobrando-se de novo, é um reflexo do que pensamos que é. Mas não é, tudo é desastroso, oh, Deus!, estou encharcado de lágrimas e não as mereço. Falo de coisas grandes como a noite e tenho medo de ruídos na madrugada.

Mas a verdade, tão triste de reconhecer, é que não escurecemos as vistas. Antes, escurecemo-nos a nós, tornamo-nos um oco, vago, dilatado e recluso.



9 de março de 2013

Sua lucidez, meu espanto

"There is no great expression in this worn-out eyes."


I) Desapego

Correr, fugir, escapar.
Escapade now!

Ouvimos o sinal, distante, fatigante e tal…
Once more: escapede now! There is no other out!

Caminhar, rastejar, pular.

Deixará o dinheiro para o faxineiro, a cartola e a bola para os netos da senhora e o pão... será escondido no colchão.

Escapade! Caminhar, fugir, pular. Prosseguir e não terminar.


II) Minha lucidez no fim da linha

No horizonte, vejo o sol nascer, belo. Então, sou dominado por uma vontade, uma inquietude magnífica de sair. Começo a percorrer o caminho que primeiro alcança meus pés e o movimento de andar se torna involuntário.

Perguntar, sem ter quem responder.
Olhar, sem poder chamar alguém pra ver.
Pensar, ou pensar que pensa. Além.
Sentir, e não ter palavras para descrever.
Prender, mas não ter como trancar. Deixar escapar, sem ter como impedir.
Deixar-se dominar, sem querer ter forças para resistir. Esse é o caminho.
Falar e não parar, mesmo sem alguém para escutar.
Falar, falar até o outro os ouvidos tapar. Assim deve ser o caminho.
Saber, mas não ter a quem ensinar.
Contar, sabendo que não se chegará ao fim.
Tomar, beber. Até o cálice esvaziar.
Gritar, saltar. Chutar, empoeirar.
Sentar-se no chão, cruzar as pernas e fazer círculos com a mão.
Chamar a atenção, mesmo sabendo que não te perceberão...


III) Praça deserta

Ele caminhou até a praça deserta. Folhas secas cobriam o chão. Velhas árvores faziam uma leve sombra sobre o local. E havia um chafariz. Como ele amava brincar no chafariz.
De repente, um barco. De folhas velhas, não secas. Não mais secas. Folhas de jornal. E soprava com animação a distração, que já não era invenção.
Próximo ao chafariz, um banco de madeira velha, e que nem por isso deixara de se nobre, convidava-o a se sentar. Um breve diálogo, e o sábio centenário assento o convencera. Largou o barco. Deitado desconfortavelmente, dormiu.
Onde estava Anilór, a prima de infância, a prima de praça, de inquestionável decência? E reviveu momentos quase mortos pela memória. E o chafariz teve água de novo.
Acordou. O sol desapareceu, anoiteceu. O passeio havia acabado. Anoiteceu. Se ainda estivesse viva, Anilór já teria ido pra casa. Se ainda estivesse viva, sua mãe já teria acendido a brasa. Anoiteceu. E na escuridão do caminho, ele se perdeu.


IV) Sua lucidez, meu enigma

Algo espera por mim, não sei se é ruim. Meus olhos arregalados, meus pêlos arrepiados. Algo vela por mim, será meu pai?, será minha alma, acorrentada pelos meus pecados ilegalmente defenestrados?

É uma noite tempestuosa, estou com medo. Tremo de medo, incontrolável sentimento que expulsa lágrimas de desespero de meus olhos cansados, arregalados. Estou escorado na parede úmida, na penumbra de minha masmorra mental.
Ali, atrás do aparador de meu falecido genitor, eu sinto. Não há mais pensamento, não há mais batimento. Vejo, reconheço. Detrás do aparador, são os dedos do mal. E apontam para mim, e me chamam, e sussurram. “Estive esse tempo todo esperando por você, vem correr comigo no quintal.” Meu Deus, meu Deus, reconheço essa voz! É Anilór anunciando meu final.












































(Anteriormente publicado como Kerygma)

5 de março de 2013

Vidas nossas, líquidas



Ele calçou as botas de couro, viu pela janela o sol que se levantava, abriu e fechou a porta atrás de si. Partiu.


Há um momento de vida, mas é singelo.
Há um momento de pensamento, mas é controverso.
Há um momento de levantar as mãos para o céu, mas é comedido.
Há um momento de olhar para trás, mas é medroso.
Há um momento de olhar para o que se foi, mas provoca choro.
Há um momento de se equilibrar no meio-fio, mas é lúdico.
Há um momento de fé, mas é abstrato.

Passo sobre passo atrás de passo, ritmo e velocidade, compasso, flashes mentais, cenas interrompidas, sons aleatórios, passo sobre formiga atrás passo, uma folha seca, crec!, passo, cadarços bem amarrados.

Há um momento de sorrisos, mas é barato.
Há um momento de promessa, mas é desconfiado.
Há um momento de diversão, mas é um só momento perdido em uma escura galáxia de outras horas.
Há um momento de contestação, mas passa pois um somente não empurra o mundo.
Há um momento de conformismo, mas é ilusão pura.
Há um momento de vida, mas é disfarce.
Há um momento de dança, mas embaralhamos os pés.
Há um momento de beijos ardentes, mas era fogo na palha e consumiu-se.

Às vezes ele para num banco de praça, observa os pombos e a fonte. Mas o encanto só durará até o primeiro mendigo pedir-lhe um cigarro. Como fugir? Do que fugir?

Há um momento de egoísmo, mas é fatal ao espírito se se mantivesse.
Há um momento de braços abertos ao vento, mas é sucedido pelo cansaço.
Há um momento de sonhos realizados, mas é efêmero.
Há um momento de gargalhadas, mas é vazio como o plástico.
Há um momento de sonho, mas é sintético.
Há um momento de fuga, mas traz efeitos colaterais.
Há um momento de sobriedade, mas é insuportável.
Há um momento de vida, mas é esperança tão somente.