5 de março de 2013

Vidas nossas, líquidas



Ele calçou as botas de couro, viu pela janela o sol que se levantava, abriu e fechou a porta atrás de si. Partiu.


Há um momento de vida, mas é singelo.
Há um momento de pensamento, mas é controverso.
Há um momento de levantar as mãos para o céu, mas é comedido.
Há um momento de olhar para trás, mas é medroso.
Há um momento de olhar para o que se foi, mas provoca choro.
Há um momento de se equilibrar no meio-fio, mas é lúdico.
Há um momento de fé, mas é abstrato.

Passo sobre passo atrás de passo, ritmo e velocidade, compasso, flashes mentais, cenas interrompidas, sons aleatórios, passo sobre formiga atrás passo, uma folha seca, crec!, passo, cadarços bem amarrados.

Há um momento de sorrisos, mas é barato.
Há um momento de promessa, mas é desconfiado.
Há um momento de diversão, mas é um só momento perdido em uma escura galáxia de outras horas.
Há um momento de contestação, mas passa pois um somente não empurra o mundo.
Há um momento de conformismo, mas é ilusão pura.
Há um momento de vida, mas é disfarce.
Há um momento de dança, mas embaralhamos os pés.
Há um momento de beijos ardentes, mas era fogo na palha e consumiu-se.

Às vezes ele para num banco de praça, observa os pombos e a fonte. Mas o encanto só durará até o primeiro mendigo pedir-lhe um cigarro. Como fugir? Do que fugir?

Há um momento de egoísmo, mas é fatal ao espírito se se mantivesse.
Há um momento de braços abertos ao vento, mas é sucedido pelo cansaço.
Há um momento de sonhos realizados, mas é efêmero.
Há um momento de gargalhadas, mas é vazio como o plástico.
Há um momento de sonho, mas é sintético.
Há um momento de fuga, mas traz efeitos colaterais.
Há um momento de sobriedade, mas é insuportável.
Há um momento de vida, mas é esperança tão somente.












Nenhum comentário: