7 de dezembro de 2011

Alpendre

"Ecos vieram do céu ríspido, e nas noites trovejantes me visita meu cavaleiro de armadura prateada."


Noite fria. Na soleira da porta, luz ambiente. Mas no meu alpendre de cerâmica de tijolinhos vermelho-sangue um velho senta-se em uma cadeira sem balanço. Coisas estranhas acontecem. E a música gira no disco rodante, e a fumaça que o ar respira me põe em movimento.

O relógio da parede branca tem seus ponteiros apontados para minha sanidade abalada. Encaram-me, cospem em meu rosto esvaziado. Eu, pálido, a rastejar com os cobertores. Estamos embaixo da mesa, estamos sobre o tampo do piano sem afinação. (Minha sala me julga, meus móveis me desobedecem.)

Mas no aflorar da noite a janela abriu-se em uma folha só, deixando outra parte claramente à espreita de um inimigo - que não existe fora das minhas inspirações em devaneio. Tolo sou, mas deixo estar assim mesmo. Sentado na mesma cadeira, o velho agora balança, e sobre suas pernas há um tabuleiro com pães quentes e emassados no queijo. O hálito me sorve, e enquanto odor eu percorro as dimensões todas.

Noite fria. Mas, trovejante, o céu despeja sobre as pontas dos meus pés uma ira acumulada, uma ira que também é minha, e condensa em si os desmandos humanos. Porque a ingratidão nos trouxe até aqui, e – antes de nada além disso – somos todos insinceros conosco mesmos. Ainda gira sobre a canção o disco de carnaúba, estala como em mim cada marca de um tempo muito longínquo, desde a concepção de tudo o que agora violentamente é derramado de cima.

Mas minhas mãos são frias e suas veias ressaltadas deixam claras as marcas do tempo e dos dissabores. O relógio da parede branca tem seus ponteiros apontados para números que, antes de toda essa insanidade, não eram nada além que marcos de contagem. Mas hoje, passadas as eras e concretizadas as ideias da desarmonia lógica – que se pensam, pelo contrário, lógicas demais -, tais símbolos põe-se antes de mim, ante minha vontade e ante minha própria liberdade.

No espaço temporal de uma noite, que aqui promovo vigorosamente que seja intenso a ponto de tornar-se o oposto disso, os braços do velho descansam sobre os da cadeira, e a cada ida e volta desta última uma vida terá passado.

5 de dezembro de 2011

O mundo já volta

"Um passo de cada vez. Lento e devagar, rastejando seu casulo bem atrás de ti."


Apagaram minhas luzes, sumiram com meus referenciais. No centro da sala um ventilador silencioso e branco a rotacionar como coruja um pescoço incansável. Ele olha para todos nós, ele olha por todos nós.

É muita fumaça pra uma só cabeça, é muita pouca luz pra tantas cortinas. Eu quisera pisar mas me dizem que por ora não temos mais chão. Estou ilhado neste lugar, terei de fazer daqui meu covil sórdido? Eu quero abrir as portas, embora lá fora só haja vácuo. Mas do centro da sala o todo onipotente continua a nos observar, mecânico, coordenado.

Um passo de cada vez e eu subirei essas escadas até o ápice desta torre. Mas enquanto passamos por suas janelas de concepção medieval não vemos nada além das nossas miragens, montagens criadas por ti para me agradar – iludo-me no discurso, expurgo (?) minha culpa. Mas eu estou sedento, continuo subindo, lento e devagar, arrasto-te junto a mim.

Muitos espelhos para poucas pessoas, ilusão criada por nós para nos dizer que aqui encontraríamos felicidade e prosperidade. Mas não há ninguém além de ti e de mim – nós, desprezíveis insetos que mentem o dia de amanhã para conseguir sobreviver neste. E uma voz paciente que ecoa a todo momento me dizendo “aguarda, o mundo já volta.”

Torres, castelo, espaços sem tapete, janelas quebradas, sumiram meus referenciais, não há luz. Na grande sala escurecida e desornada, um ventilador balança repetitiva e pacientemente sua cabeça circular. Em fuga desmedida eu pego da sua mão, te arrasto por todas as esquinas, tu te rebates entre as arestas. Agora te quero soltar de mim, mas não sais, estás entremeado, é visgo, é sombra, é maldição que se arrasta e segura meu pé.

Aqui não há ninguém. Tu que eras antes minha companheira, minha companhia, não passas de minha consciência arrependida. Mas seja lá quem – alguém – desabrigou-me das minhas lâmpadas, e agora tudo é uma grande escuridão mental. Não tenho referenciais de limites e me confundo com o todo que eu não sou. Mas do centro da sala ecoa minha sentença: Aguarda, o mundo já volta.

16 de novembro de 2011

Coisas de nós

Ele me toca no lado secreto do ser. Está em águas límpidas de um lago profundo, escondido onde poucos um dia conseguiram banhar-se. Com cuidado e destreza ele escalou pelos abismos e entrâncias do meu ser formado por dissabores e vitórias, derrotas e levantares de cabeça. Suavemente ele cruzou fronteiras cujo translado eu mesmo havia tornado proibido, ele passou sem no entanto fazer caminhos, chegou com pisares silenciosos de gato. Surpreendeu-me.

Faço escrever-se isso aqui apenas por meu bel-prazer, sabendo que poucos conseguirão compreender o ocorrido. Não é coisa para muitos, não é coisa para tolos. São coisas de Tiago.

À noite enquanto ele dorme eu o visito. E mesmo que estejamos a mais de milhar de quilômetros um do outro não há nada que impeça que eu entremeie meus dedos por entre seus cabelos macios e acarinhe sua fronte. Ele franze a testa, ele esboça um sorriso, ele envolve meu braço. Sem me ver realmente, ele sabe que estou ao seu lado. Protegendo e pedindo guarda. Doando-me e me nutrindo de sua serenidade. Deitado, adormeço junto a ele. Nessa fusão somos uma só peça, de mesmo nome e nobreza.

Coisas de Tiago.

Eu o admiro, admiro profundamente. Há algo indefinível nos torpores que ele me faz experimentar, desejos tão puros com seu lado devidamente profano. Porque nada é santo, porque não somos prontos e acabados. E, na vontade dessa imperfeição, de complementar nossas qualidades com os defeitos um do outro, é que construiremos nosso paraíso particular. E essa edificação terá o formato apaixonado das músicas que ele me dedica e o sabor da saudades que dele sinto agora.

Majestoso, ele chega e se senta à minha frente, seus olhos amendoados fitando-me. Seus lábios, delineados de maneira que não se perde jamais a elegância o beijo, ainda que sejam beijos selvagens. Como são coisas de Tiago eu não procuro nele obviedades, eu não compreenderia se ele agisse como todos os outros. Na singularidade fomos lapidados, e se para alguns há algo de rebelde ou infantil em nosso modo de percorrer o caminho, é porque nos deixamos viver por inteiro. É porque eu quero senti-lo dos pés à cabeça, tê-lo todos os dias em mim, ser para ele a extensão de si mesmo.

Companheirismo, afeto, cumplicidade, excitação, imaginação, paixão, criatividade, amor. Completude. Risos, gozos, gargalhadas, suspiros, lábios mordiscados, pescoço marcado.

Coisas de Tiago.

Sed ad vitam aeternam

"Olho nos olhos, mas ali só vejo nulidade. Como se tivessem sido tragadas para dentro suas emoções. Presas, afogando-se em um redemoinho fora de alcance, ele engole a si próprio sem que possa – ele ou eu – fazer alguma coisa."



Despovoado a princípio, em um piscar de olhos logo habitado, em meu chão eu me vi. Flutuava sobre todos os outros e pela minha frente uma imensidão rarefeita se fazia. E não havia onde me sentar, e não havia porque me deitar. E meu amor estava longe, e meus inimigos já não mais me alcançavam.

Eu dei passadas longas embora não soubesse muito bem onde pisava, eu cuidei para não cair antes de perceber que fizesse o que quisesse dali não iria conseguir passar. No meu novo chão não havia poeira, translúcido piso feito de mística que até então eu ignorava. Deslizava contrariando o atrito de Newton.

Neste chão que não era de cerâmica ou granito pisavam muitas outras pessoas. Eu abaixava meu chapéu quando elas passavam, mas todas eram muito silenciosas. Quando tentei dizer algo percebi que também eu não conseguia enunciar som algum e no lugar, como um soluço repentino, cantei algum louvor ao senhor. Que eu não sabia bem quem era, mas pela nova consciência que haviam me implantado eu percebia que seria o prefeito do lugar.

Sentado como se no meu próprio credo de estar ali – pois não via em outro lugar sustentação parecida, eu parei para pensar como estava longe de casa. Sentia uma saudade benigna, como recordações de amigos que se reúnem para falar de tempos passados que, contudo, ainda podem ser revividos. E gostaria de dividir isso com alguém, embora as pessoas ali só falassem cantando e sempre para o dono do lugar. Cantavam como na missa do padre Joaquim, eu me lembrei depois.

Quando me quedei enfurecido com toda essa calmaria – pois eu não podia comer já que não sentia fome, não podia bradar já que me tinham acalmado a voz, pois eu não precisava me agasalhar onde a temperatura era sempre agradável –, cai de punhos cerrados no meu novo chão. Esmurrei aquela estrutura, provoquei um abalo sísmico, enlouqueci-me. Se Ismália atirou-se da torre, queria eu me jogar dali de cima para ao menos sentir um pouco de vida, que era o que menos tinham essas tantas pessoas estatizadas.

Mas naquele meu novo chão – onde não havia como temer já que não existia perigo e onde eu não conseguia, por mais que quisesse, causar desordem entre aqueles semelhantes, as estruturas foram feitas para não serem rompidas. E no broche da camisa branca que eu havia ganho quando cheguei estava escrito Sed ad vitam aeternam. Entendi que tinha ganho o grande presente por uma vida de bons modos.

E era no meu novo chão, onde não alcançavam as serpentes e cujas aparências só variavam da matiz azul para a junção de todas as demais cores, onde não havia vícios para me condicionar e ciência por se fazer, já que não havia problemas ou mistérios, que eu estava destinado a passar o resto de meus dias que não teriam resto.

9 de novembro de 2011

Era outra a situação agora

De repente, tudo cessou. Depois de todo o ruído, passado o torpor místico, os flashes que cegavam a visão sempre até então tão boa, depois daquela sensação (inverídica, então?) dos finíssimos ganchos rasgando a pele dos pés a cabeça, depois de tudo isso e com certeza coisas mais que não me lembro - dada a fluidez do momento - houve um estabelecimento de paz.

Tinha estado sonhando? Não me recobrei, de imediato, das últimas sequências temporais existentes na memória. Olhei em volta. Estava em uma sala familiar. A mesa de madeira escura, a cadeira de balanço, a cristaleira repleta de louça – raramente utilizada, o micro-ondas preto que destoava do cenário primário. Eu estava na casa de minha avó.

Entorpecido, sentei-me. A ordenação estabelecida de paz se mantinha, embora abrisse espaço para que uma confusão se instalasse: a regressão das cenas – absolutamente falha – me deixa no torpor da preocupação quando percebo que não me recobro do seguimento dado até aqui. Estive sonhando essas imagens tão reais agora há pouco?

Sentei-me. A cadeira suavemente embalou-se, sem que eu precisasse empregar um esforço físico exato para tal. Com a mão no bolso esquerdo, retirei de lá um maço de Marlboro comprado e ainda não aberto. Aparentemente eu o tinha comprado ainda em Rio Branco, mas dada a falta de nexo entre toda a memória imagética que se apresentava então, aquietei-me. Levado pelo movimento lento da cadeira, acendi o cigarro e o pus na boca.

Como que junto à fumaça, eu me elevava de maneira a estar, de certo modo, também dissolvido no ar, bastando querer para espalhar-me por toda a casa e, no instante que quisesse, ajuntar-me novamente em outro lugar. Deixei os pensamentos – loucuras, loucuras – prosseguirem, mas tentava me ater apenas ao ritmo das tragadas ao cigarro. Um formigamento na ponta dos dedos, da língua, da face, acometia-me desde quando dei-me por estar na sala. Flutuante estava eu.

Mais por hábito que real vontade, abri a garrafa branca em busca de café, mas estava vazia. Olhei, tomei-a nas mãos, fitei, refleti. Estava alva, alva e vazia. Exatamente como eu me sentia. Como se tivessem sido tirado de mim todo o peso sobressalente das injúrias da vida, das lembranças rancorosas, dos casos de amor mal vividos. Por um momento aquela pequena garrafa, um objeto, um objeto sintético e artificial, comungava do mesmo estado espiritual que eu.

Levando por um impulso, tão repentinamente como que o acordar recente, caminhei pela casa, abri uma porta, duas, três – não estava mais no mesmo ambiente – e cheguei a uma outro recinto. Ali a atmosfera era pesada, as janelas velhas de modelo barato eram cobertas por cortinas escuras e puídas. Pairava um odor malogrado, mas discreto. Talvez não o tivesse sentido senão por uma sensibilidade aguçadíssima – com a qual vi-me capacitado de ora pra agora –, que tangia ao espiritual.

Ali um amontoado de faces conhecidas jaziam algo que eu ainda não podia compreender. As feições tristonhas me deixavam apreensivo, embora, por esforço maior que fizesse, não conseguisse as fazer sairem do transe em que estavam e ouvirem uma palavra minha que fosse. Algo de errado acontecia. Eu sentia, sentia nitidamente. Despi-me da paz celestial e uma angústia pesada pegou-me pelos pés. Eu agora andava arrastado, e dificilmente me movia naquele bolo de gente. Meus olhos se voltaram para o que até então eu ignorava – estava no velório. Os céus se abriram e jogaram sobre mim, como a mão pesada do pai que vem para arrumar-lhe os juízos, a claridade da consciência.

Junto ao caixão sentava mamãe. Ela tinha o terço na mão e usava a blusa azul marinho de botões rosáceos, roupa costumeira de casa. Mamãe, que há tantos meses eu não via, e que – ainda não sabia o porquê – não atendia mais as minhas ligações. Em desespero eu a abracei, mas era como se não estivesse ali. Aos berros, com a boca espumante, agarrei-a pela camiseta, tentei ver seu rosto. Nada. Eu já sabia, embora negasse a todo instante – oh, Deus – que ela já não mais me via. Estávamos em prantos.

Meu tempo acabava. Vindos de fora daquele ambiente, os embaixadores me puxaram pela mão e secaram minha face imaterial. A situação era outra agora, falavam-me, e, sem ter onde ou em quem me apoiar, deixei-me ir com eles.

2 de novembro de 2011

Jogados

“Nós deixamos as coisas todas jogadas e voltamo-nos nossas costas. Nós nos deixamos todos jogados e saímos com as coisas nas costas.”


Calada cada palavra sua despejada no meu tronco amorenado de quem um dia foi todo amor. Que de dor eu suporto mais que poderia, e não desabo sob esta mortalha de carne agora pelo único motivo do orgulho sadio que ainda me move. Que se sabe, o único sadio que se move, ainda, dentro desse diálogo monologado.

Senti eu mais a dor do punhal cravado, ou fui quem puxou seu tapete em frente à multidão? Que se agora caíste com a boca nos degraus não ponha em mim a culpa do mau olhado, que, no caminhar desalinhado deste gostar errático, no máximo fora mal interessado. Porque da vida em palácios que me foi prometida houve o ponto em que nosso entendimento estivesse reduzido a um porão que abria para fora, tão somente. Não posso negar que te amei. Desejei intensamente cada sorriso colhido em manhãs de feriados e cafés na cama.



Nós deixamos as coisas todas jogadas e fechamos a porta. Cada um para si, como se o todo em comunhão fosse, antes de tudo, um delírio de poucos segundos. Momento ido, promessa quebrada. Eu queria chamar a toda essa legião ingratidão, mas isso essa não era, vez que, a minha maneira, também tenho certa parcela de culpa. Parcela advinda de uma compra feita a dois.

É como eu me sinto agora – mentira, ninguém sabe! Porque nenhum outro, afora alguns poucos judiados, poderiam suportar com meu vigor estas tantas chibatadas que meu lombo recebe advindas da fissão dos sonhos construídos com tanto carinho. Por que não nos avisaram de que tudo ia implodir-se depois?

Alguém sonhou em demasiado na montagem deste mosaico que agora desmorona. Não me venha com a estória “vamos medir por lágrimas ou pelos desafetos verbalizados” para saber quem saiu perdendo, quando está estampado em ambas a faces que fui eu. Culpado por acreditar em ideias que em mim foram implantadas, porque estava quieto no meu canto, assistindo minha janela, deitado no meu travesseiro.

Porque, antes de você chegar, essa casa era em pé. Que eu não posso agora implantar meu próprio coma particular e me enclausurar eu sei, e, assim, não é um castigo demasiado jocoso que eu tenha de deslocar o que antes dessa forma já o era, de maneira a me sentir no lar do meu peito novamente? Nosso movimento é identicamente oposto do mesmo eixo. Mas alguém está andando mais rápido.

Nós nos voltamos as costas e deixamos as coisas jogadas pelas portas todas. Porque por nenhuma das entradas possíveis seremos bem-vindos um para o outro novamente.

31 de outubro de 2011

Aqui, onde as noites são tormento

"Maria, Maria! Os descuidados abriram os portões de abaixo e deixaram a sombra passar."


I
Perdido em meio aos corredores escuros da miséria. Enquanto um rato arrasta minha calça, e eu procuro com dedos nas gretas a alma mais próxima. Perdido eu, tão ou mais que os demônios que me perseguem. Sino negro reza nas minhas costas, seu toque longo me dispersa da minha incessante busca. Alguém vem atrás de mim.

Metido eu nisso, mais que a mãe, mais que os miserentos irmãos da minha vida passada, metido nisso mais que aqueles a quem tentei culpar pelo fracasso. Vítima da minha macumba feita, eu agora acordo nessa terra escura de areia sem fim e placas rajadas de pedra fria. Onde o sol não aparece mais, o céu acinzentado indica constantemente três horas da tarde. Onde o castigo não acaba.


II
Abriram os portões e deixaram a besta entrar. Agora ela brinca com meu filho enquanto eu saio para trabalhar. Feliz, risonho, em perigo ele está. Ela o diverte, ela lhe alimenta, ela o maleficia. Feliz, risonho, em perigo ele está. Minha casa assombrada.

Na pequena claraboia do banheiro, mãos pontudas irrompem à meia-noite e trinta e dois. Onde as cortinas se fecham sozinhas e as madeiras rangem. A besta escondida me perturba todas as madrugadas com sua mania de ecoar seus cânticos pelos cômodos. Minha casa assombrada, meus pés presos por correntes. Vítima da minha macumba feita, fui derrubado.

Aqui, no meio do nada, onde as noites são tormento e sono não chega. Amaldiçoado para nunca dormir e me manter vidrado com as sombras que me arrastam para o buraco. No centro da sala, minha cova cavada por seres de dedos longilíneos e unhas curtas. Túnicas pretas cobrem meus visitantes indesejáveis, mas também é preto o cenário da janela. Onde o sol não aparece mais, o céu indica como que três horas daquela tarde.

Dor inerente aos meus credos, castigado eu por ter acreditado na palavra proferida pelo terceiro. Metido eu nisso, culpado pelo fracasso. Alguém está atrás de mim.


28 de outubro de 2011

Todos os amanheceres

Parte Um - Oração antes de dormir


Velha ratazana que urge do sótão, deixe-me em paz apenas amanhã. Vá rezar em outros cantos.

Sol nascente do poente, aqueça-me do avesso para que mantenha-se acesa aqui ao menos uma chama. Esse amor não pode acabar.

Espíritos que me rodeiam, dancem a minha volta uma ciranda alegre, quero espantar os maus olhados.

Minha mala azul sempre cheia, prometo que vou esvaziar-te depois da próxima viagem. Prometo que vou arrumar toda essa bagunça, tirar o pó dos móveis, ordenar os papéis. Quando acordar o primeiro sol.

Vela que encera de negro minha mesa de madeira tratada, queime minhas ideias imprestáveis para que dessa forma só lampejem na galáxia particular do teto deste quarto os projetos fartos de futuro.



Parte Dois - Todos os amanheceres


Manhã de sol clareia meu rosto. Hoje eles esqueceram de dormir. E o sono veio me visitar mais cedo. Eu estou inebriado. Calor, quente, suado. Com gosto de gostoso.

Por fora destes muros de pedra, meus ouvidos ouviram um som diferente, um entoar de encanto. Não preciso de outro quase caso de amor. Eu sou invencível, incrível, incrível. Eu creio. Na minha sombra que me acompanha, nos meus passos de miss meio-fio. Eles também acreditam. Não vamos morrer, de certa forma. Nunca.

Eu tenho meus méritos. Eles falam por mim, e eu me calo. A imagem agrada, meu gosto é bom, eu não tenho que me preocupar com as havaianas cor de preto e branco. São passos que me antecedem. Na soleira, os tapetes as cumprimentam, e então estamos muito bem.

Cafés da manhã, muitos. Em dias de domingo, nas terças e outras tantas feiras também. Servidos com requinte de paixão, sem sair da toada do bem querer continuado. Eu vou ser bom amante. Pra ti, apenas pra ti.

Não vamos falar de amor. Que é coisa imaterial que ninguém não consegue nunca ver. Vamos falar de eu e de você, de como eu te quero bem, de como eu gosto de ouvir suas vocalizações por meio do meu telefone vermelho. O romance perseverante, vamos falar de quando vamos nos ver nos meses da vida.

Manhã de sol clareia meu rosto, noite escura me protege. Por cima um capuz que me guarda, uma blusa que te esquenta. Hoje o sono me visitou mais cedo, e eu adormeci com odores de nome tão familiar a mim. Não que eu vá me preocupar agora, mas vai ser bom quando tudo isso eu puder falar-te enquanto meus dedos escorridos passeiam por tua nuca.

Eu tenho meus segredos. Quando bem querem, pululam dos meus bolsos e saem aprontando pelas calçadas em que já passei. Eles resguardam meus sucessos e enaltecem meus fracassos, para que cada lição aprendida se mantenha atual. Incrível, incrível. Mas tudo o que podem fazer é me ajudar a ter mais cuidado com o tato, com as disparadas da linguagem. Eu tenho meus segredos, e eles querem logo conhecer os teus.

Não vamos morrer nunca...


22 de outubro de 2011

Romance n° 2786

“Bateu à minha porta, como da última vez, a maçã libertadora.”

Na calada da noite, meu íntimo eu se refaz novamente. Bebendo de uma nova fonte, você sabe, as coisas jamais voltarão ao ponto anterior. A serpente só alcança seu calcanhar uma vez. De resto, tudo o que fica são vontades, verdades e memórias. Calado.

Eu, imaginando aqui neste círculo a repetição ilusiva do ciclo, desenhava no chão meu nome repetidas vezes. Meu nome, o nome de outro. As mesmas letras, em confusão. Identidade interconexa, prova de irrefutável amarra, ou simples traços feitos no areião com algum desinteresse. Ciclo rompido, novo início.


Na calada da noite, ele me inspira com intensidade. Intenso seu toque, mesmo longe, mesmo que seja só por um segundo. Nos voos da vida, a cada levantar um sol mais ou menos intenso faz brilhar minha face descansada. Como o chegar de outra estação, acende-se repentinamente o lampião antes alojado sob o solo. No gritante do dia, no meio-dia.

Uma declaração. O desabrochar de uma rosa esperançosa. Uma declaração. Sentimentos há muito mortos fazem sangrar o novo hímen, estão renascendo agora, rompendo a virgindade endurecida das antigas frustrações. Ele me enfeitiçou de uma maneira, que nele não consigo parar de pensar de forma alguma.

Todos temos responsabilidades. O barco parte novamente e recolhe a âncora com vigor. Está solto, liberto nas águas das possibilidades. Os perigos aumentam a cada milha percorrida, bem como a vontade de navegar. Sim. Haverá de haver muito gostar aqui, fora do círculo do ciclo. Falante.

Enfeitiçado estou, a mercê de suas vontades. Risonho também sou, agora, com suas lembranças diárias que chegam a mim. Desprotegido, navegante, desbravador. Com coragem há de se vencer os novos desafios que imergirão das águas ainda calmas. Ainda claras.

Novo início.

7 de outubro de 2011

Fraude

"Não se aproxime. Estamos encerrados na inveja, somos terrivelmente rancorosos. Essa noite abriu minha mente para a realidade."


Essa história não poderia terminar bem, não poderia. Ele encontrou alguém mais bonito que nós. Ele tem alguém que não o deixará desamparado nunca mais, como outrora ele nos deixou. Não somos mais interessantes, um para o outro, nós para o coletivo. A unidade – apesar de nunca ter existido – é agora desfeita mesmo no plano teórico. Desunidos estamos.

E nas linhas curvilíneas de cada membro está escrito um pouco da nossa tragédia. Em cada olho luminoso, no fundo, brilhamos segurando uma lamparina fraca, fraca como nós. Estamos mordidos. Foi uma longa jornada de batalhas perdidas. E quem encontrou, finalmente, o caminho não fomos nós. Nós, tão cheios de soberba, os donos do mundo, sentados sobre aquela pedra, sobre aquele balaio. Ditando as ordens dos amores de outrem, sabendo o que ia e o que não devia, quem era, quem se desfazia. Fraude.

Vamos salvar nossa vida, se ainda tivermos alguma. Essa história não poderia terminar bem. Não ponho nessa depreciação a nossa indignação, porque não é bem esse o ponto. Deleite, sexo, espumantes quentes, beijos estratégicos. Coisas que nunca tivemos, quando nunca fomos realmente desejados. Ultraje. Depravação da pior categoria, depravação não aprovada por nosso conselho. E eu não estou feliz nesse poço. Onde as coisas só caem mais e mais sobre nossas cabeças. Não são os documentos que vão nos melhorar. É um problema continuado.

Jogados, esquecidos dentro do buraco. Acharam que esqueceríamos. Não nos classifico como indignados, não é essa a observação. Por dentro estamos instigados, invejando a felicidade do outro, o outro que está distante. Enquanto aqui estamos, perdidos debaixo deste céu estrelado. Estrelas demais. Inveja, rancor e unhas cravadas em um ciclo interminável. Quero encher os pulmões de câncer, depredar ainda mais essas vísceras traiçoeiras. Não nos bastamos, não fomos realmente desejados.

Ele tem alguém mais bonito que nós. O alguém que, a nós, estimula mais que ira, estimula outro desejo. E nessa trança não obtivemos nenhum dos corpos, nenhuma das mentes. Perdemo-lo para o outro, perdemos também o outro. Nós, os conselheiros fraudulentos. Nós, em macomunação conosco mesmo – não percebemos durante todo este tempo? Ele tem alguém que não o deixará desamparado nunca mais. E nós aqui, cheios de ousadia, de intransigência. Besteira, besteira!

Sem as convenções, sem as diversões, agora estamos aqui. Protegidos, murados da resistência, tentando impedir que nos conquistassem. Imaturo, eu, tu – nunca percebemos durante esse tempo: não somos o objeto do desejo. Não o fomos hoje, não seremos amanhã. Justamente amanhã quando assim estamos, acabados.

Essa noite abriu minha cabeça. Fumaça fria, gosto amargo na boca. Não fomos feitos para esse tipo de situação, não fomos, não fomos. A dor nos fez forte, estamos seguindo uma estrada para o singular. Interiormente, você sabe, queremos que tenham pena de nós. No máximo estamos estremecidos até as bases, solitários imersos em um mundo feliz. Estrelado demais. Não apontarei para ti se tirares este dedo da minha face. Não tenho companhia, nunca a tive.

Fraude.


5 de outubro de 2011

Hoje, no meu mundo particular

"Acordei, pus o cigarro de lado, acendi uma tocha. Hoje, no meu mundo particular, abri as janelas pelo início da manhã."



Saí descamisado pela rua sem carros, pela avenida abandonada. No meu mundo particular, onde o sol aparece escurecido, eclipsado pela poluição das mentes descrentes, essa gente que tenta disseminar vaidades de não promiscuidade, valores de fraternidade. Esses valores não me cabem mais.

Pela vida abandonada, onde saí sem as bermudas da sorte. Hoje acordei e abri as janelas de meu apartamento, sobreloja da padaria de ladrilhos amarelados e balcões de fórmica esturricada. Destorci a torneira, mas a água muito suja só me tornou mais imundo. Eu, imerso nessa realidade aflita, esse banho jocoso que derrubam sobre meus sonhos infantis.

E meus tênis estavam com os cadarços emaranhados, não pude calçar e caçar tão rápido quanto antes desejara. O desespero me acompanha, meu livro de cabeceira, meus ensinamentos de uma vida inteira. Desestressar, rolar compulsivamente sobre um colchão apodrecido, minhas cobertas emboladas, meu travesseiro manchado. Meu cigarro aceso sobre o cinzeiro preto do criado-mudo.

Mudo não só o criado de madeira, cheio dos carunchos e dos pós. Mudos também estamos todos, impactados, decepcionados, apressados para ir aos banheiros da vida, aliviar a tensão, desarmar este gatilho. No meu mundo particular, onde a chuva é ácida e o café não tem açúcar. Melhor correr, melhor correr antes que cheguem também aqui os rumores de chuva, de verdes plantações, de campestres alegrados. Essas besteiras que se dizem por aí e ali. Fruto da imaginação tenra dos infantes ignorantes.

Hoje acordei, pus o cigarro de lado, limpei o suor com a toalha rubra. No meu mundo particular abri as janelas no início da manhã, deixei que a luz fraca penetrasse pelo vão desvidrado em minha parede. Peguei os velhos livros, limpos, que continham os ensinamentos para a vida, as palavras da religião, as ordens de esperança. Adorável ficção de uma educação inteira. Não aqui, não no meu mundo particular. Onde impera a realidade amarga, onde os dias são vividos como se deve fazer.

Por alguns momentos, por alguns instantes. Ordenar o pensamento, abrir a agenda, avaliar as tarefas, cobrar desempenho. Não há lugar para os incompetentes, não há espaço para os sonhadores, esses delinquentes da distorção. No meu mundo particular, onde a segmentação impera e somos dadivados com o que é de nosso merecimento.

Acordei, pus as esperanças de lado. Abri as janelas pelo início da manhã, fumei dois cigarros. Fechei as janelas, tranquei as portas, desliguei o oxigenador, fui trabalhar. Hoje, no meu mundo particular.

3 de outubro de 2011

Sensações em fragmentos

“Todos os beijos que puder dar. Neste estado de êxtase profundo, todos os braços que puder acolher, em abraços. No silêncio em que os corações se encontram, toda a luz que puder emanar, em acalentos. Todos os beijos que puder dar, todos os festejos.”


Ela me beija com força, me aperta com carinho, despede-se de mim. Não sei, não sei, algo está vindo e não vai haver volta por um tempo. Sinto os ares mudarem, mas não me dizem qual será a nova direção de tudo.

A página virada violentamente me causa imersões profundas no bule de chá. Por fora estamos todos escaldados, mas tudo ainda nem começou. Parece que vim de muito longe para este evento, mas não encontro a porta de entrada do show. Alguém está com minha entrada antecipada?

Ele tem um nome complicado, não decorei à primeira vez. O cabelo ajeitado sem estilo me chamou atenção. Não percebe que estou em sua mira, atrás da pilastra marmoreada. Mas eu tenho seu telefone, uma foto do primeiro namorado de sua mãe e sei quantas vezes ele dormiu com outros rapazes na última semana. Sim, ele é um deleite.

(Todos os beijos que eu puder dar, em abraços improvisados. Toda a emoção dissipada, agora reaproveitada por outros corações, em outras sensações. Rápido, um tiro, apaixonando e se desapaixonando, seguindo o ritmo demarcado. Todos os amassos, todos os banheiros, os lugares emporcalhados do amor.)

Ela me pega de virado, aperta meus bolsos, ela quer alguma coisa que não poderei dar. Eu estou esperto com os próximos capítulos, quem saberá o desdobrar deste tormento? Minhas mãos calmas se desafeiçoam com as suas, e nessa batalha eu já sei que perdi toda a guerra.

Seu rosto definido, seu corpo torneado por debaixo das malhas pretas e justas, é debaixo dele onde eu gostaria de ficar agora? De longe sou atingido, não revido, não reajo, ele não sabe onde estou, ainda. Poderá ficar tarde para sair e aí, bem, e aí quem vai me levar? Não preciso de um amor, mas por uma noite descartável eu me daria por inteiro.

O movimento lento, o compasso das beberagens, o vestido se arrastando pelo chão, onde caíram meus cigarros?, eu cambaleio mas ainda acerto o alvo. É questão de tempo e alguma boa vontade divina. Meus objetivos não podem ser deixados de lado. E amassa-se o copo plástico.

(Todos os corpos que puder beijar, todas as partes. Todas as bocas que imaginar, todas em meus lábios. Onde esse sentimento vai me trazer, para quem eu vou dar, onde dormiremos na noite em que desabar sobre mim o peso das responsabilidades?)


21 de setembro de 2011

Esses desnecessarismos tão necessários

Passados se vão, futuros chegam. E ainda há um vazio, uma lacuna que questiona se houve aproveitamento da passagem do tempo, se o lapso foi preenchido com valia. Futuros se consomem, o passado é elevado à glória. Como se, de outro jeito, pudéssemos ter feito mais, como se, visto de agora, muitos detalhes pudessem ter sido modificados. E aquilo que foi amor em queda podia estar em pé agora. Podia?

Fotografias jogadas sobre minhas cobertas reviradas, aqueles velhos discos ainda tocando no aparelho de som. Cartas rabiscadas, algumas emboladas, algumas envelopadas, outras escondidas, mas não jogadas fora. As mais representativas estão manchadas de lágrimas.

A caminhada é permanente, o percurso por vezes se assemelha a um círculo, a uma estrada torta. Vícios que se repetem, erros que alcançam nossos pés de novo e novamente, o dedo que acusa, a dor. Sentado no canto da sala, eu observo o balé dos outros, a dança compassada, a graça dos movimentos. Não participo, não opino. Do meu posto de discrição, apenas descrevo. Sinto a emoção dos outros, internalizo, amo à distância.

Aqui calor, aí todos encobertos por tecidos grossos e mangas compridas. Frio. Aqui e aí, a distância. A nossa vala particular, a separação, a nossa maneira escolhida de ignorarmos, daqui e daí, o que acontece aí e cá. Não queremos nos machucar com esses desnecessarismos. Esses desnecessarismos necessários? Compulsiva e teimosamente fechamos nossos olhos para o pulsar de vida que, mais uma vez, com disciplina perfeita, iremos fazer ir-se, asfixiado. É outro caso de amor perdido. É outro caso de amor levado pelos minimalismos da rotina, pela falta de atenção mútua, pelo oceano de detalhes a que nos prendemos para esquecermos o medo que teríamos de nosso próprio caso de amor que poderá não dar certo. E, já era previsto, por isso mesmo, não deu.

Fotografias jogadas sobre meus aparelhos de som, os velhos discos tocando nas cobertas reviradas. Cartas emboladas, algumas jogadas fora, algumas em lágrimas. No canto da sala eu observo a dança dos outros, o compasso dos casais, a fluência dos odores de amor que se elevam. Não participo, não me dou por notar. À distância, internalizo a emoção dos outros, minha tentativa frustrada de amar.

Podia?





15 de setembro de 2011

Cenas de amor na fazenda

“E como ia a embarcação ao acaso, também eu adormeci. E no meio das águas, como ia a embarcação a esmo, também eu percorri milhas, inconsciente.”


No meio da paisagem noturna, o campo. Mata, árvores retorcidas, casinhas ao longe. E aqui, nos meus braços, o amor. Lá longe o som do trotar das vidas nas cavalariças, a poeira levantada, a ventania. Aqui, nos meus braços, a esperança.

Mas Maria não estava satisfeita, ainda precisava mais. Enxugar-lhe as lágrimas, recompor-me o cavalheirismo perdido depois de tanta contemporaneidade. Operemos o milagre, rezemos. Vou por todas as velas reunidas no canto da sala, próximas à teia da aranha esquecida. Fez-se fogo. Chiou o bule. Cenas de fazenda, cenas de simplicidade.

Noite passada, enquanto dormia, senti que alguém pegava minha mão. E mesmo que não pudesse enxergar pela altura dos milharais que nos rodeavam, guiou-me pela estrada correta. E atravessamos palácios de sabores diversos, de cores não dicionarizadas. E abençoou-nos um céu envelhecido. A cena típica do cerrado em seca. Nosso pés marchavam em sintonia, cortando, abrindo espaço em meio à vegetação trançada. À distância a música tocava, solitária, na casa sozinha.

No meio do campo, a paisagem noturna. Delicadamente composta, com todos os elementos no lugar. Lúgubre, contida, sóbria. A casa à meia luz, a vitrola com o disco em movimento, cortado pela ferina agulha. As sombras, a cerca, os faróis dos automóveis aparecendo e desaparecendo em meio à longínqua e acidentada estrada. No meio da paisagem noturna, nós. No meio do campo, duas figuras dançando no meio das duas horas primeiras. De mãos abraçadas, acertando passos, fechando os olhos, sentindo o sabor da ponta da língua. Dedicando juras de amor.

31 de agosto de 2011

Eu e a consciência superlativa

Por baixo das escadas, eu. Travesso. Desesperado, segurando a tesoura com as pontas dos dedos. Espiando sua passagem, avesso a todo o sentimento de amor, repelindo o desejo acumulado...

Por baixo do cobertor, uma luz. Eu, com pensamentos fluorescentes, ideias que não deviam ter saído do plano sináptico, aludindo a uma dolorosa tortura. Somente eu em um delírio de autossuficiência eterno. Retirem-me daqui em vestimentas de força.

Assim vai caminhando meu tempo. Assim é cumprida minha sentença. Por baixo da escuridão, eu. Dentro do guarda-roupa de mogno, são meus os bufares de ciúmes. A contagem dos passos, a invisibilidade progressiva. Mas te acompanho. Meço, apalpo, beijo. Ainda que não perceba, percorro seu corpo com minha língua áspera. Profundo, intenso, sonoro. Eu.

Nem uma sombra, nem um tênue fio prateado a mais. Eu. Absoluto em minha consciência de ser, expansivo, retrátil e volátil. Nas mais variadas formas, nas mais discretas frestas. Por debaixo desta capa de felicidade, eu, disfarçado. Contraio-me, evito o riso indevido, preocupo-me com a passada em falso. Eu, eu e minha adoentada concepção de existir. Haverá alguém a notar toda essa perturbação no ar ou não passo de uma ordem elétrica desalojada em meio ao mar de cabos bem conectados? A sinapse revoltosa. Eu? Hão de caçar-me, de impedir nosso momento sublime de gozo?

Escondo-me. Debaixo daquela velha cúpula de abajur sou eu, rodando, girando. Tragando com imensurável dor a solidão intencionalmente adquirida.
Vejo, analiso. Com a íris avermelhada sou eu, observando qual o rumo tomado por seus olhos fixados na fotografia. Queimo(-me), rio para esse Eu imaginário que sempre me dá razão.

No final, eu e essa grande parafernália mental, febris, dançamos solitariamente em meio à sala vazia, sobre o tapete vermelho. Aos olhos dos terceiros, eu. Apenas.



21 de agosto de 2011

Eu, parte vinte e dois, capítulo dois

Eu.

Emaranhado de sensações agora conflitantes. Terei perdido o senso, terei perdido o tino de como lidar? Amargurado, não. Curado na dor, como azeitonas em conserva?

Respondendo apenas por minha pessoa, estou indiferente agora? Aparentemente egoísta, ou isso é apenas o querem que eu pense de mim mesmo? Porque o medo não aparece mais com suas faces tão visível como antes. É a falta de importância que tenho dado às circunstâncias? Por um momento, estranham-se a pessoa de hoje e a de ontem. Estou inquebrável nesse novo tempo?

Há outra hipótese. Constituído de estilhaços, já não há como perceber novos trincados. Quem realmente habita esse corpo jovial? Quem está por detrás das ações e do discurso?

Eu. Caprichoso, inconsequente, previsível, despreocupado, calculista, prepotente. Tantos títulos, ponderações jogadas ao acaso, à espera de que eu já tenha me classificado negativamente antes que outros o façam. Mas no advento dessa negociação, não seria estranho que eu não estivesse realmente infeliz?

Como se tivessem se tornadas plásticas as relações exteriores e apenas me importasse o fortalecimento sistemático do Eu. Ou por dentro ainda me dissolvo à espera dos reconhecimentos? Ainda serei o garoto que acredita na possibilidade do amor e do amar?

Eu, sistemático. Preocupado com a ordem, com a agenda, com o tempo e a organização. Preocupado com meus passos e cortando pela frente os indivíduos que ameaçam todo esse equilíbrio. É essa a herança que as experiências tem me deixado? Porque sobreviver à dor tem parecido reconfortante. Na escuridão, solitário, brilho como um diamante, preocupado apenas em mostrar o próprio brilho a si. Lustro-me diariamente nesse egocentrismo tão belíssimamente polido. Quem está por trás desse discurso?

Eu. Cansado de ter responsabilidades para com os outros, cansado da expectativa. Sem querer saber o que pensaram, se fui agradável, se estarei cumprindo com meus papéis, se causei o impacto positivo, se alimentei a esperança de um novo encontro. Ou tudo isso é apenas o que querem que eu enxergue de mim mesmo?


7 de julho de 2011

Eu e o reflexo que não me deixa mentir

“Pela lateral entrei, saio pela porta dos fundos. Sem ser notado. Sem ser sentido. Uma aparição, uma sensação que escapa, que não se pode reter com os dedos. Algo que falta, mas não se sabe exatamente o quê...”


Nem quis, assim, dar muita importância a minha presença. Mas é que é difícil negar o que a gente sente. Pulsar vivo e constante, esse rubro olhar que os persegue. Sim, sou eu nessas noites quentes, sou eu com uma taça quebrada nas mãos, completamente desorientado. Desorientado.

Não, não é uma revolução. É mil vezes o passar de uma pessoa só. Não se espante. Não consigo ver além do que me foi destinado enxergar. Não sou ruim e nem deixo de me importar assim, sem nada. É só prestar a atenção na essência, há algo de equilibrado por aqui. Equilibrado.

Todos correm, é uma desordem, eu não sei se estou participando. Não fiz sexo com todos os caras que estavam aqui, e agora? Quisera eu estar dirigindo aquele ali, mas gastei mais do que podia com prazer pessoal e por vezes rápido demais. Prazer que escapou num sopro de vida, num jorro de milagres. Deveria retroceder e mudar estes feitos? Até que ponto sentir o gosto do pecado na ponta dos lábios me deixa arrependido?

Sou enrustido em fumaça. Se você consegue me ver, está pertencendo a um círculo tão complexo quanto jamais poderá racionalizar. Está, na verdade, inserido em uma roda seleta. O que não lhe dá garantias, o que não lhe concede privilégios. Ninguém é o que realmente parece por aqui. Eu sou a fuga, eu sou a inconstância. Eu estou a passos largos, você me acompanha sem perceber. Desorientado. (Eu?)

Esse tempo todo, eu só estava brincando de seguir minha sombra. Será que trouxe multidões desenfreadas para junto do meu caminho? Mas se eu era todo o tempo aquela inocente criança que quisera somente se divertir com seus brinquedos sexuais, isso fará de mim um menino sem presente de Natal? Será que exagerei em algum ponto?

Enquanto eu ligo o fogo e acendo tantos cigarros, queimo as pontas dos cabelos dos mais curiosos. Aparentemente não estão me dando atenção, aparentemente estou só, jogado às traças dos meus carpetes. Afinal, quem sugou até o talo, quem secou a última gota? Quem são os maiores beneficiados? Por ora, minha garganta cortada não poderá responder por mim. O que fizemos nos escombros do ritual da pureza? Sangram por dentro todas essas lembranças... O culpado não sou eu.

Estou saindo, pela porta dos fundos...


29 de junho de 2011

Direção: [desconhecido]

“Quando eu me fechei, fecharam-se também as portas para ele. Quando eu saí, seu mundo desabou.”


E eu disse Caminha, velho amigo, é longa a estrada. A falta de esperança tornou-se ambígua ao seu padecimento. Enegrecidos os sonhos, as pontas dos dedos e a retina são apenas fuligem. Farinha do mesmo saco.

Eu esperei, eu gritei pelo seu nome. Eu sentei-me em círculos enquanto aguardava sua mente confusa se decidir.

E eu ordenei Levanta-te, companheiro. Mas o brilho de seus olhos estava amanhecendo cada vez mais apagado. As lágrimas que derramaste não foram suficientes para guardar algum tipo de lubrificação. Seu coração fatigado, as fibras endurecidas, não foram apenas suas palavras que tornaram-se ásperas.

Acendi um cigarro, deixei a fumaça lavar meu desespero. Pareci sereno, mas estava manco, apoiado em muletas que criei com o bojo de fracassos que carrego, com as lições da existência sobre como não acreditar nas tais humanidades. Esmigalhei na mão direita uma folha seca, vi os fragmentos voarem livres, mas nem tanto, pelo vento frio.

Minguou o tempo, o relógio parou. Nesse estado de quase morte em que se permite, a oportunidade já passou e afagou seus cabelos castanhos mais de uma vez. Você nem percebeu. Agora estende a mão, tenta agarrar algo invisível, não segue uma linearidade lógica. Oh, não...

Eu me omiti em opinar. Eu esperei, pacientemente, que pusesse ordem em suas prioridades. Eu fiquei aqui, permaneci aqui até que tomasse a frente, até que discernisse. Foi aguarde em vão, tempo sem frutos.

Nessa manhã de inverno, agora, nem o anjinho eterno da fonte envelhecida poderá lhe indicar o rumo correto. Eu, espectro, posso acariciar seu nariz arredondado, mas nem esquentar suas orelhas, nem nada mais. Minha voz está para sempre inaudível, minha imagem transfigura-se diante de sua visão incrédula.

A dor lhe tornou uma estátua de amarguras.


17 de junho de 2011

Manual simplificado do amor

São uma da manhã e minha xícara está cheia. Minha vida está vazia? Devo esquecer algumas pessoas do caminho?

A receita não está pronta. Alguém esqueceu de anotar a quantidade de farinha. E agora? Como vou preencher a lacuna? Parece-me que alguém riscou uma anotação importante aqui, o que estava escrito por debaixo? Como vou completar o sentido?

São uma da manhã e meu cigarro está inteiro. Estou acabado, então? Devo reler algumas mensagens no celular?

Latejante é a saudade de quem está distante. Será que aguardo em vão? Haverá outro a esperá-lo no saguão? Latente são sentimentos recentemente expostos. Dilemas e corrupções, será que haverá recompensa para minha espera[nça]?

É que nesse tempo todo eu não aprendi a depositar confiança em um corpo apenas. É que, pelos caminhos da vida, eu entendi que os outros iriam me puxar para baixo. Por isso que eu ando tão distante do chão, por isso eu tenho o meu próprio pique. Aqui, só eu me escondo. Fiz certo?

É que, de repente, na iminência da mudança, apareceu-me esse dilema. Fruto da corrupção. Fruto do encontro desprevenido, da literatura dos olhos, da respiração mútua e desconfiada. Ainda sim, da correspondência confiante. E agora você está debaixo do meu travesseiro. Por cima da minha cama.

O ritmo me anima, eu não consigo pregar os olhos. Fiz o certo? E agora, o que virá no dia de amanhã? Parece-me que acordo e sua imagem ainda está aqui. Sim, ela não quer se desprender e eu não quero soltá-la. É uma querência mútua. É uma querência mútua? Essa vibração em uníssono. Por um momento, somos apenas de nós.

Eu acho que posso dizer – estou feliz. Eu acho que é possível avistar que, embora o futuro seja embaçado, a satisfação é concreta. Não, não deveremos medir o tempo pelo relógio. Vou rasgar o calendário. Não fará sentido contar os dias enquanto persistir a atenção. Enquanto perdurar o beijo, os ponteiros estarão pausados.


31 de maio de 2011

Onde vou me sentar agora?

“Parece que, nesse intervalo, perdi meu lugar. Onde vou me sentar agora?”


Eu, que costumava viver paixões desmedidas, estou sentando nesse lago seco agora. Em meio a algumas ervas daninhas, próximo a pedregulhos que desafiam o esquadro por sua angulação ameaçadora. Mas mais ameaçadora agora é a minha situação de pensamentos. Desordenados e descabidos, onde eu vou me sentar agora?

Em meio a uma sequência de eventos que eu não controlei alguém ligou o ventilador e soprou toda essa areia para cima. O deslanchar da música não coincide com o abaixar da poeira. Eu não enxergo, eu ando com as mãos sobres os olhos, eu dou passos em falso. De repente toda a segurança caiu por terra, quem está no controle agora? Onde eu deixei cair a peça?

São sentimentos que me travam dessa maneira e impedem minha mente lúcida de tecer soluções racionais? Quanto mais me debato mais parece-me afundar todo o barco. Eu olho em volta mas as motivações parecem ter cavalgado para muito além do horizonte, onde também o sol já começa a se por. Onde vou aquietar minhas angústias agora?

As trombetas tocam ao longe, as lágrimas escorrem perto demais. Sou responsável por mais de uma vida? Como tentar apaziguar as situações, como tornar tudo menos doloroso? Como vou extinguir a dor? Alguém me dê um manual de como resolver essas charadas que encontrei sem solicitar. No final das contas, cada um seguirá, solitário como sempre o fora, a sua vida, em rumos opostos? São vias paralelas, sem um ponto de intersecção futuro?

No final, parece que já estive nesse cenário antes. Ele é sempre nebuloso, para onde quer que se olhe não há alvorada. Onde vou, meu Deus, me sentar agora?


26 de maio de 2011

Alegorias

Quando as nuvens cobriram a maior parte do horizonte, estava anunciado o destino do resto da tarde. Chuva. Daí a pouco a vista era esbranquiçada, pálida como suas mãos. Dividiam-se em duas partes. A primeira, chuvosa, era um manto branco delicadamente ali depositado. Mesmo as altas torres de telefonia ficavam tímidas em meio àquele cenário – mal se via seus espectrais corpos projetados. A segunda parte eram os campos pra cá dessa cortina. Embora não houvesse qualquer evidência espacial de divisão, eram como se uma cena se tivesse colocada sobreposta à outra. Não se tinha sinais de água caindo e era bastante límpida a imagem das plantações, diversas elas, umas mais verdes e outras menos. [IP²] Hortaliças, milho e alguns punhados de pés de café eram facilmente distinguíveis. E ainda havia as casinhas simples, cunhadas com tijolos furados e sem acabamento de pintura.

[IP¹]

Não demorou para que a noite chegasse, empunhando majestoso manto vermelho, excessivamente cravejado de brilhantes estrelas. Tingindo de negro a terra em que passeava, era agora impossível enxergar. A escuridão tomou conta de meus olhos; não ouço, não sinto, não observo – pronunciava um profeta de inclinações misteriosas. Uma íntegra fileira de cem postes foi assim, em ordem progressiva, mas atemporalmente determinada, se apagando. Era uma reverência respeitosa à passagem do manto, do sinal de concordância em prol da majestade que ele representava.

Ele assistiu a tudo isso, calado. Fez o sinal da cruz e se levantou. Na Rua dos Iluminados, onde a luz havia por setecentas vezes sido dinamitada, pôs-se a levitar desapercebidamente. Trajava um chapéu branco com enfeites dourados e um óculos escuro extravasando sua personalidade introspectiva. De deus dedos pontiagudos gotejava óleo viscoso e frio.

Não há tempo que não seja intransponível, não há lugar determinado para o possível. Não há cura para as dores não perdoadas, não há cura para as feridas ainda abertas. Os eventos progridem em alta rotação.



[Índice de Produção¹/ inserir] Café e tabaco lhe faziam a cabeça naquele momento. Nada mais existia, nada mais importava. Uma xícara de porcelana branca estava depositada sobre um pires azul. Em meio à fumaça, revelava-se o cinzeiro. Prateado e pesado. Nada mais importava. Fora a tarde que findava, nada mais existia.

[Índice de Produção²/ substituir] Sem sinais de água caindo, a imagem das diversas plantações, umas mais verdes e outras menos, era bastante límpida.

9 de maio de 2011

Accident comes, accident goes

E, com um piscar de olhos, o olho registrou o cabum. Página virada da história, essa que poderia ser tragédia ou uma comemoração intensa. Eu, que só senti minha cabeça girar, e tudo o mais se contorcia entre nós e o resto. De repente, tudo era resto de nós, a divisão acontecia.

Eles vão. Ignoram-nos solenemente, eles nos desejam seus risos e olhares de desdenho, sua reprovação. Nós aqui permanecemos. Braços cortados pelo singelo toque na manopla, pela pressão excessiva de um pé só. Ou somos vítimas da ação de vários pés em conjunto? É justo deixá-los direcionarem assim o nosso futuro?

Eu que pensei que a guerra cotidiana tivesse personagens mais terríveis. Somos todos protagonistas de um grande mosaico que não diferencia o politicamente correto do erro plástico. Em plástico nos envolvemos, metais retorcidos nos contornam. Somos todos peça da mesma inútil engenhoca agora.

Ouvimos zumbidos, ligações e celulares. Vozes vem, vozes vão. Com um piscar de olhos, menos ainda, talvez, os ouvidos registraram o som surdo, o impacto dos ossos, o fisgar da fibra que nos segurava. Para que? É a pressa cotidiana que nos promove dessa maneira? E de tanto querer chegar acabamos destinados a lugar nenhum. É um ensinamento oriental? Queríamos apenas a perfeição?

Ferragens vem, cacos de lanternas se vão. Lágrimas de poucos, converter-se-ão no pesar de muitos. Sangue derramado entre nossos brinquedos, inocentes brincadeira essa que nos pôs em movimento. Movimento demais. Movimento demais? Sirenes e luzes brilhantes em minha pupila dilatada, não sei se ainda enxergo. Ouço as vozes, a contestação, os “meus deuses”, mas não sei de onde vem. E de repente não sei mais onde fomos parar. Cruzamos algum portal?, por que todo esse desconforto?

O tato vai-se. Rompeu-se alguma fibra, por um mistério o impulso eletrônico foi impedido de percorrer o caminho que sempre fizera desde... Desde muito antes de eu tomar a consciência das mãos, dos pés. Perdi a consciência, essa? Ou perdemos as mãos, essas partezinhas a que quase nunca dedicávamos nossa atenção? De que me adiantaram os cremes rejuvenescedores agora, oh pai?


Acidentados chegam, acidentados se vão. Pelos olhos do outro somos apenas dados estatísticos agora. Finalizamos nossa função.




18 de abril de 2011

Então, deixe-me ir...

“No púlpito onde me encontrava ocupei o melhor lugar a que tinha direito. Abri as janelas, escancarei as cortinas, deixei a luz penetrar. Eis que vi...”


I

De uma perspectiva nova, vi minha vida. Flutuei sobre seus aspectos mais reprimidos. Caminhei palmo a palmo toda minha história. De um lado para o outro, examinei todos os detalhes, ouvi cada palavra, relembrei os rostos dos semelhantes. Em um exame de paciência, trouxe à tona cada copo de água recebido, os mililitros de fumaça tragada, as xícaras de café dedicadas a um ou a outro. Fiquei feliz.

De toda nossa história, do primeiro beijo ao primeiro movimento brusco, da primeira crise nervosa ao segundo beijo, tudo levamos. De tudo lembramos, ainda que a vontade exercida pela vaidade seja a de negar. Não lembramos nada, não sentimos nada. Mentira. Somos todos humanos, somos todos amantes. Eu de você, você de mim.

Por todas as crises de ciúme pelas quais passei, por todas as portas fechadas que você me deu. Por aquele beijo fora de hora, pelos gritos ao volante. Pelas intermináveis noites de satisfação físico-emocional. Pelo primeiro presente recebido, pelas visitas surpresas. Pelas declarações de ano-novo. Pelo primeiro aperto de mão sincero. Fomos felizes.

Agora tenho de deixá-lo ir.


II

O mais difícil foi dar o primeiro passo, a primeira virada de costas. Depois, a nuvem tinha tomado uma dimensão menor...

Eu senti cada escorrer de lágrima, cada torpor insano que me percorrera os vários caminhos possíveis entre o indescritível emaranhado nervoso que aparelha o ser humano.

Saí. Sentei-me na beira da calçada, vi os ciclistas passarem. Ainda havia uns cigarros amassados no bolso, uma caixa meio usada de fósforos. Acabaram-se ali. Acabaram-se como também acabaram as faíscas de longos anos de companheirismo a que nos dedicamos. Foram se consumindo, transformando-se em cinzas e em brasa quente, nociva, como as pontas dos alvos cigarros.

Quem de nós foi culpado? Houve um salvador em nossa peleja? Foi você quem não quis me escutar, fui eu quem atropelou o sentimento com excessivas formalidades? Quem foi o culpado por não comprar o sorvete?

Somos todos humanos, somos todos amantes. E talvez, pela primeira vez, eu possa enxergar a grande lição a que nos obrigamos. Por um instante, fomos perfeitos um para o outro. Por um momento, atingimos a completude. Seus braços foram meu porto seguro, minha presença, seu maior conforto. Como todas as estações que permanentemente cerceiam esta vida, essa hora acabou. Fomos jogados violentamente no vazio escuro, não entendíamos bem o que estava acontecendo. Pela primeira vez, nenhum de nós segurava o controle.

Agora tenho de deixá-lo ir. Por mais de uma vez, por mais de um registro em minha memória, fomos felizes.

Deus nos abençoe.


22 de março de 2011

Nós e Eles II

“Agora posso ver. A fina linha que os segura na segurança que tem de si está amarrada em vigas comprometidas.”


Tomamos todos juntos os ônibus da cidade. Muitos de nós caíram durante a revolução. Um, dois, estávamos todos preparados para a guerra. Mas e se nos descobrirem? Como poderemos nós esconder nossas boas intenções? Como poderemos escapar do fuzilamento moral a que nos pretendem?

Minhas mãos não estão sujas de sangue. Essa é uma guerra limpa, essa é uma guerra santa. Não carrego os livros, não carrego velas, nem jarros, nem pães. Escapam de nossas delineadas bocas apenas as cortantes palavras, e daí disseminamos a discórdia. Discórdia? Mas não eram deles as falsidades proferidas quando se tangia Respeito e Consideração? Mas não foram eles quem nos atearam fogo pela primeira vez?

O porquê inicial perde sua valência. Somos todos naturalmente unidos por um objetivo. Nossa existência deverá ser preservada, nossos dotes, conservados. Oh não!, mas e se agora pudermos ver? E se enxergarmos como eles esquematizaram toda uma História para tentar nos destituir? E se embalados nos nossos sonhos despertasse uma força nunca antes vista e acabássemos por irmos todos para um só rumo?

Antes de todo o plano, um sentimento em comum. A vontade de fazer valer nossa evolução, repreendida pelos falsos doutores, pelos falsos profetas. Ah, já aconteceu. Uma vez abertos os olhos não se pode mais voltar ao estágio de escuridão. Nós sabemos, agora. Nossos passos são sincronizados como nossos olhares matadores. Não, não somos mais aquelas princesas fragilizadas.

Oh não!, mas e se agora nós tomarmos o seu poder? Como se defenderão aqueles que colaboraram com o extermínio de nossos antecedentes? Aqueles espancadores de esquina, aqueles juízes corrompidos pelas tais normas neo pentecostais? Sagraremos o pescoço de cada um que não esteja sistematicamente equiparado a nossa distinta linha de perfeição.

Você pensa que conhece o tamanho de nossos exércitos? Oh não!, mas e se agora você se depara errado? Estamos em cada terreiro, em cada construção, na liderança de suas empresas de serviços essenciais. Estamos na impressa, nos colégios, nos seminários. Estamos nos guarda-roupas. Estamos um degrau acima de sua sociedade desgastada e descrente das mentirosas normas impostas.

Não temos medo do fogo do inferno. Não sofremos com piadas discriminatórias. Seus valores hostis nos tornaram mais fortes que suas loiras crianças. Nossa ética não é abalável, nossos propósitos não são negociáveis. Oh não!, mas e se nós lhe revelássemos que já não há mais retorno?

Pegamos você.


21 de março de 2011

Nós e Eles I

Por agora muito pouco posso falar. Mas falo por mim, falo pela boca de muitos. Muitos são os calados no meio da noite, muitos são os quietos dentro dos guarda-roupas. De longe eu observo essas nossas crianças se esquecendo, elas estão negando sua existência. Seus corpos estão caídos em entorpecentes baratos, mentes brilhantes estão se apagando por nossa falta de zelo.

Mas você precisa saber. Há muita vida do lado de cá. Há pessoas felizes fazendo o que eu faço. Há esperança para todos esses desolados. O dia não acabou quando seus olhos se abriram. Você é mais capaz do que para o que foi preparado.

Em salas fechadas estão eles, com suas lunetas luminosas a verem o que se passa. O mundo parece demasiado hostil, esse proposito da vida, desconcertado. Há muitas perguntas de porque, mas as respostas andam vagas perdidas na boca de poucos.

O consolo não virá, não virá em hora alguma. As lágrimas derramadas já foram muitas, mas o chão não se secará sozinho. Ainda serão muitos a baterem a cabeça na parede, ainda serão muitos a agarrar os lençóis pela madrugada a fim de aplacar o desespero. A solidão não irá embora por si.

Eu preciso dizer. Há muita alegria do lado de cá. Há pessoas felizes fazendo o que eu falo. Há deuses olhando por nós. Há amizades mais verdadeiras ao nosso redor. Você ainda não compreendeu a uma grandeza a que foi destinado.

Em algum ponto da sua vida, alguma coisa parecia estar errada. Os fatos não se estabeleciam como deveriam ser. A dúvida entrou por debaixo de sua porta mais de uma vez nesse período de incerteza. Você teve medo de magoar sua mãe. Em algum momento você desejou não prosseguir.

Você não entendeu o chamado? Dê a mão a sua verdadeira vida. Ninguém está sozinho do lado de cá.


16 de março de 2011

A sincronia das intenções

Você lê a minha mente?


I

Viro. Viro e olho novamente. Meus olhos não já possuem os mesmos fachos. Eles iluminam outras direções. Disfarçando, encubro-os. Por dentro explode toda a satisfação. Por dentro. (Um novo mundo está se formando. Dimensão: desconhecida.)

- Carregue consigo o prazer de cada instante deste momento. Cada detalhe pintado em puro ouro deste céu, estas nuvens douradas em movimento. 
- Fantástico, fantástico. Ainda estará assim amanhã?

Eu. Deitado em uma maca fria, meus sentidos (parecem) desligados. Você me estuda, você observa e anota. Cada sonho é representado, cada detalhe aparente não escapa ao desejo consistente. A sonoridade, a musicalidade mágica se mantém.

Você percebe minha oração inconsequente?

Estamos a alta velocidade no meio do cerrado. O chão duro toca nossa coluna, os estalos do carro baqueiam o espírito, os olhos de todos estão sincronicamente fechados. A dimensão não é mensurada. A mão se estende, cega, ávida por um encontro. É quente a experiência? O caminho é percorrido com cautela, o tempo se alheia ao percurso dos ponteiros. A aposta é feita com expectativa acumulada. Mas se, ao final do movimento, o toque não se concretizar, terá sido em vão todo o desprendimento. Jogados ao ar bons bocados da autoestima tão cara, tão rara. A mão se contorce, no retorno frio, na fuga para si. Não há mais os bons fluidos da surpresa. Alguém ficou completamente só nesse jogo.

Todas as cores foram mortas. Ainda que sejam abertos os olhos, apenas o negro da noite profunda passeará pelas córneas.



II

Você pensa me conhecer. Minha anatomia simplificada te seduz. Seguro está, seguro você prossegue. É fácil, não há reentrâncias secretas. Compacto e em medidas cabíveis, posso te acompanhar em todos os lugares. Minha estatura jovem, meus cabelos curtos. Os olhos castanhos não chamarão tanta atenção.

Quem é ali na janela do ônibus? Onde está minha mão segurando a sua? De surpresa, eu não estou mais aqui. E ali, a distância, quem paira sobre sua sombra? Um leve aceno faz brilhar seus olhos cabisbaixos. As orelhas em pé, atentas por perceber algum sinal.

Eu estou no porta-retratos, eu mando-lhe beijos por debaixo do vidro. Mas, não, é apenas uma impressão no papel. No seu cinzeiro, eu grito por seu nome. Estou debaixo da escada, brincando com seus sentimentos? Há um vulto claramente com pernas cruzadas sobre seu gramado, e já passa da meia-noite. Onde foram parar nossos encontros apaixonados?

Viro. Viro e olho novamente. Estou deixando tudo para trás, os panos estão espalhados pelo asfalto. Talvez não seja exatamente eu quem está queimando nossos planos de felicidade. Talvez haja um reflexo distante, uma figura indistinta, o filho dos nossos medos, a criatura a que nossas mútuas incompreensões deu vida. Veja, está ele ali, no espelho velho da sala! Cubra-o, ponha-lhe os lençóis. Talvez não sejam as batalhas que me fizeram partir. Não partiu você já primeiro, levando embora algumas palavras de desculpa que deveriam ter sido distribuídas? Talvez, sejamos apenas crianças imaturas, brincando de viver.

Por ora, todas as cores foram mortas.

24 de fevereiro de 2011

Nós e Eles III

Eu me vejo em seu rosto. Eu estou sem roupas sobre sua cama. A foice cruel nos observa pela janela. Você me possui, a configuração esperada é modificada. O que se consuma aqui é o que nos consome lá fora. Há vida além de todas as inverdades. Há esperança?

Era uma vez, crianças que nasceram com um poder de reconfigurar a ordem ditada. Elas poderiam amar mais que todas as legiões doutrinadas. Elas eram capazes de uma percepção maior. Elas brincam, elas observam. Elas lhe representam perigo? Suas mentes aguçadas compreendem o que você escondeu além da cortina... Hoje aqui sentadas, poderão amanhã estourar uma revolução? O que você teme?

Esses pecados, serão todos verdadeiros? Como poderei resgatar minha alma após ter visto esse caminho? Estamos todos sendo enganados pelas mentiras ditas verdades? Por que se recusam a me abençoar se em minha memória não há crime registrado?

Houve um tempo em que rastejávamos pelos esgotos como vermes escolhidos pelo estigma. Mas nossos olhos se abriram para a verdadeira justiça. Acendam suas tochas, nós encontramos a tampa do bueiro!

Por que nos acusam como monstros? Por que nossas brincadeiras sexuais os chateiam? Estamos em todos os lugares, e a porta da casa da palavra foi fechada em nossos rostos. Pensem em nós, pensem em nós. Somos todos crianças atrás de um brinquedo. O que você teme? Amanhã estaremos estourando uma revolução.

Lacrem o bueiro. Fechem a porta. Somos apenas crianças, atrás de nossos sonhos negados. Nossas mentes aguçadas veem o que vocês esconderam atrás da bancada. Nós sabemos a verdade por detrás das mentiras camufladas de verdade.

Somos todos crianças atrás da inocência negada. Pensem em nós antes que tenhamos ido.


19 de fevereiro de 2011

Mea culpa

Não chore mais, meu amor, eu vou corrigir as minhas imperfeições...


Meus dedos batem na madeira consumida pelo desamparo que cerca as discussões minhas e suas, as atitudes, as cobranças ou essa e aquela falta de cuidados. Mea culpa? E se eu não conseguir me entregar a esse seu amor?

Eu caminho com mãos no bolso, chapéu me protegendo do sol forte que queima como a brasa sob nossos pés desgastados. No caminho do meu passeio, postes com lâmpadas que refletem os antigos casos terminados. No passeio que faço pelo caminho, os faróis dos carros me jogam na cara de volta a fragilidade perdida entre suspiros de autossuficiência. Nós nunca sabemos quando começa, mas ditamos o término com palavras enfeitadas. Mea culpa?

Mas eu carrego no pescoço o rosário rosa de contas cintilantes, eu o aperto, eu rezo. Minha lealdade jamais será abalada, e eu devo aguentar com braços fortes os estilhaços feitos pelas suas palavras. Mas não deixarei jamais que seja você lesado pelos meus momentos de fraqueza, pelas minhas lágrimas insalubres que, por quê?, brotam quando caio de joelhos nos pedregulhos de sua incompreensibilidade.

Entoarei cânticos e serei perdoado por você, meu amor, de todas as horas em que perfeição não foi a melhor definição para a qualidade de meus atos. Conseguirei ser perfeito. Porque minha história não é bonita, e eu não devo ter deixado boas lembranças nos corpos em que me deitei. Não, meu amor, meus interesses não serão colocados frente aos seus pedidos, às suas súplicas educadas embebidas em paixão.

[Preguiça.]

Que eu tenha forças para prosseguir com a bandeja, ainda que a imagem de sua consciência despreocupada me faça tropeçar. Minha fidelidade jamais será posta à prova, e meu nome será lembrado por essa bravura. Que eu não seja satisfeito durante essa vivência, mas estarei carinhosamente guardado na língua de todos os que já me provaram, em várias instâncias. Meus desgastes não reconhecidos serão meus méritos quando a caminhada terminar.

Eu se eu não conseguir agrupar motivos suficientes para me entregar a esse seu amor? Seu risco maior está em minha decisão de olhar para trás.

27 de janeiro de 2011

Senhor Mandrave

O senhor Mandrave descansa em sua casa alta no alto da colina. Pés de plantas verdes estão abaixo de seus pés cobertos de meias brancas encardidas pelo tempo. Pontos de melancolia escorrem das pontas de seus dedos, e tudo o mais é cinza já há algum tempo. As caóticas nuvens sopram pelos ares vindos do norte enquanto uma cortina escura eclipsa o restante dos raios famigerados daquele sol decadente. Decadente há tempos.

A cadeira do senhor Mandrave balança lentamente, tanto quanto passam as horas em um relógio antigo, com um Cuco velho a marcar a passagem dos sessenta minutos. Caduco, às vezes se lembra de todas, às vezes deixa esticar algumas. E daí que o dia no alto da colina tem dia que dura vinte horas, tem dia que dura quatorze. A cadeira acompanha, de costume velho. Corroídas suas tiras mais antigas, algumas substituições da madeira caídas, expulsas pelas tábuas lascadas originais. Coisa de madeira, coisa de cadeira...

Do alto de sua colina o senhor Mandrave ouve a música tema do Morro dos Ventos Uivantes, embora em seu palacete discreto não haja ventos uivantes, no máximo cachorros. Mas estão todos velhos, velhos como o tempo. As janelas rangem, ao menos. Em seu gramofone ele toca bailes inteiros de quando ainda vivia lá embaixo, à época dos jazzes, dos boleros, dos tangos. A corda que dá ânimo ao giro do disco é idosa e a música passa um pouco mais devagar, não muito diferente do modo que as memórias são processadas, é tudo especialmente amigado para funcionar então tão bem como quando fora concebido. As coisas envelhecem juntas.

As páginas amareladas dos livros do senhor Mandrave ainda contam estórias. Contam apenas, e mantém-se fiéis aos fatos conforme lhe foram impressos. Estão por demais surdas para saberem alguma alteração no conto. Contam como lhe contaram. Não se impacientam com a vagareza dos olhos que as observam, estão senhoras, querem ser notadas, querem ser cuidadosamente manuseadas. Essas vaidades que aparecem com o tempo, que nem todos assumem, mas as tem a todo o tempo lhes segurando as vontades. As vontades não são maiores que as permissões da vaidade.

O senhor Mandrave assou pães de queijo para o lanche. Ele se levanta de sua cadeira, coa o café no filtro de pano outrora jovem, mas que hoje é moreno como os escravos oitocentistas. Com paciência, o velho Cuco marca as cinco horas. A mesa está forrada com um forro de mesa axadrezado, com quadrados vermelhos, azuis e verdes. Alguns quadrados já mudaram de lugar, outros sofreram queimaduras com leites, cafés e chás quentes e estão meio descorados. A xícara do senhor da casa é branca como o leite, com a borda interna adornada por um anel fino de fino ouro. Ela poderia nos narrar boa parte da vida dele, poderia nos contar ainda o que lhe revelou o bule esmaltado cheio de pintinhas brancas, velho de casa. E enquanto isso, as caóticas nuvens soprariam pelos ares do norte o bucólico aroma do pão de queijo com café para os ares do sul.

As coisas envelhecem juntas.


12 de janeiro de 2011

Dust In The Wind (Sarah Brightman)

Eu fecho meus olhos
Apenas por um momento
E o momento se foi
Todos os meus sonhos
Passa diante dos olhos uma curiosidade
Poeira no vento
Tudo que eles são é poeira no vento


A mesma velha música
Apenas uma gota de água
Em um mar infinito
Tudo o que fazemos
Destroçado ao solo
Embora nós nos recusamos a ver
Poeira no vento
Todos nós somos é poeira ao vento, ohh


Agora, não espere
Nada dura para sempre
Apenas o céu e a terra..
Isso vai embora
E todo o seu dinheiro
Não comprará outro minuto
Poeira no vento
Tudo que somos é poeira no vento
Poeira no vento
Tudo é poeira no vento
Vento...


[composta por Kerry Livgren]