19 de abril de 2012

Traição

“Então era ela. Escondida entre as folhagens, iluminando com o olhar o avesso do espírito, o escuro do ser.”


Foi Maria quem acordou no meio da noite. Reluzente, com os sapatos de cetim e as fitas coloridas no cabelo esbranquiçado. Poderia estar enganando, poderia estar mentindo, poderia estar dormindo. Mas não, estava lá, de pé da cama, reluzindo como um lustre de antiquário. É ela, é ela que abana com o lençol enquanto você se despede da vida na janela todos os dias no fim da madrugada.

Maria, Maria com copo d'água na mão, Maria com as mãos na cabeça, Maria com a cabeça no copo d'água. Com seu vestido de camurça avermelhada, é ela. Poderia estar morrendo, poderia estar tendo um ataque cardíaco com ingestão de arsênico. Mas não, estava lá, sustentada por sedativos de cafeína. Enquanto você parte para um outro jogo, enquanto eles te dão o bilhete, enquanto papai fatura milhões, é ela quem dá o sorrisinho de canto de boca. De canto de parede.

Sentada sobre as pernas, torcendo dedos e esvoaçando o cabelo, Maria pensa. Maria decide sobre avançar uma casa, avançar um patamar. Maria pensa sobre o beijo não dado, sobre o sexo de todas as noites, sobre o que poderia fazer com quem se aproximou demais. Maria, no tapete de bolinhas de alumínio, pensa sobre o homem misterioso do gabinete vizinho. Olhando as horas, contando relógios, é ela.

Do alto do salto precipita-se para uma queda livre. Olha pra baixo, vira as janelas, tampa as panelas. Essa vida de dona de casa, essa vida de supermercado de Maria. Ela realmente quer rolar, quer se jogar escada abaixo e transitar pela atenção não recebida. De mãos unidas e anéis dados, de braços cruzados e semblante calculado, é ela. Vai dar um passo e estender sobre a razão um pano de prato.

Dentro da gaveta, fechada sob a tampa da caixinha de música, é ela. Maria bailarina, Maria modesta menina, Maria da cordinha. Vai vazando como som que encanta, vai soando como canto que hipnotiza. Adeus, adeus, diz ao reflexo do espelho de todos os dias. Poderia estar pensando, poderia estar tomando pílulas de tarja-preta. Mas não, Maria estava apenas ressonando, suando, zunindo. Sumindo pelos gramados, se adornando de folhas verdes, amarrando o cabelo em coque, tornando-se inalcançável. É ela.

17 de abril de 2012

Get in love, get out of

Ligado.

Como luz. Como água que desagua, irrompe, estraga, destrói, constrói e derrama-se pelos olhos de quem fica pra trás. Como luz que queima, transborda, percorre, leva e mostra. Como conexões de humanos cheios das humanidades.

Desligado.

Fica pra trás. Deixado, esquecido, escurecido. Tudo é escuro, ainda que brilhe sob a folha verde o foco de luz da lágrima escorrida, insistente e dolorida. Alguém que entoa um canto doentio e persistente, esquecida, elo quebrado da corrente, esfriada. Deixada pra trás.

Ligado.

E faz-se caminho, e faz-se a passos largos ou alargados novos rumos de uma estória que poderá, um dia, constituir história. Como contos de rua, como conversas de porta, como o causo que saiu no último instante da visita que ampliou, no alpendre, a despedida. Histórias de poste provido de lâmpada enfraquecida, amarelada. Fatos de folhas secas, fatos de folhas empoeiradas de jornal. Fatos. E fotos, para que se mantenha permanente a figura de quem já foi, um dia, o dono de seu coração.

Desligado.

Com um toque para baixo, nada mais se vê, nada mais além do que está permanentemente, e nem tanto assim, gravado na memória. Mas a memória é demasiadamente composta de humanidades e, assim sendo, há de esquecer um dia, quando a dita-cuja lembrança não se fizer mais dolorida ou fonte de risada. Com um toque que pressiona para baixo, tudo é escuridão, tudo se desmonta – embora não se apague. Sem sombra não se nota minha existência, ainda que, enquanto consciente, eu tenha a certeza de que aqui estou.