27 de julho de 2012

Quinto grau


Parte Um – colapso nervoso pós-traumático

Aqui estamos sentados nessas poltronas de couro. Há pequenos cortados aqui e ali, não se importe. O tapete camurçado é cortesia da casa, mas será removido tão logo essa nossa conversa chegue ao final. Quero os detalhes de sua aventura, quero saber mais sobre o que conta como um terrível pesadelo ou um sonho de dias dourados. Por favor, deixe-nos intrometer em suas lembranças. Sim, obrigado.


Parte Dois – um plantel de perguntas

Bem, senhor Marroco, gostaria de ouvir suas palavras sem interrupção ou pausas longas demais, gostaria de poder anotar as divagações e assuntos relacionados. O que aconteceu e onde você estava? Com quem eram aquelas pessoas com que você falava? Sim, então havia um ruído impossível? Porque as pessoas estão sempre inventando coisas o tempo todo, e tal, sabe como é. Sim, eram muito brilhantes? Pois, prenderam seus pés ao chão? Hum, pois não, prossiga.

Então havia dezenas deles em um “estacionamento”. Próximos a órbita, sim. Como uma missão colonizadora. Alta rotação que transformava o concreto em suposição? Poderia ser menos... poderia ser mais, hã, claro? Sim, matéria, ondas eletromagnéticas, hum, sim. E estavam predispostos a alguma coisa? Um conluio? Acho que vamos ter de ligar um gravador, o departamento irá se interessar nessas informações. Intimidado? Não, por favor. Estamos todos entre pessoas que prezam pelo futuro próspero dessa sociedade.

Diga-nos, há algum espaçamento de tempo não explicado? Viveu isso antes, então? Hum, sim, sim. Como uma outra consciência extra-dimensional? Física... metafísica? Acho que estamos avançando um pouco rápido. Pode detalhar-nos sobre o “jogo”? Hum, sim, sim. E estava de volta à rua? Seus pertences foram deixados para trás, senhor Marroco? Um maço de cigarro, ah, sim. Perdido? Na correria? O senhor acredita que a curiosidade, sim, sua, possa ter despertado o interesse deles? Um cigarro? Jonas, tem cigarros ainda na gaveta? A primeira, debaixo da cuba. Obrigado. Podemos continuar, senhor Marroco. Não, não é preciso se exaltar. Proteção do Estado? Bem, não posso garantir, mas podemos pedir alguns recursos. O material que o senhor tem é de extremo interesse para nós.


Parte Três – instruções prévias

[Zumbido agudo, dores lancinantes e olhos fechados.] Eles irão lhe fazer várias perguntas, pode repassar tudo que viu por aqui. Entendemos que há uma certa... estranheza nisso tudo, e que atualmente a sua percepção lógica pareça estar bastante abalada. Não faça perguntas, libere sua mente, tente me entender. Nos entenderemos dessa maneira, mas preciso da sua boa vontade. Nós temos boa vontade, não queremos agressividade de sua parte. Não precisa de garantias conosco. Iremos lhe mostrar coisas além de suas crenças, gostaríamos que estivesse atento para tudo o que se passa. [Flashes intensos]


Parte Quatro – painel desconcertado

Nos parece que aquele tal Marroco ficou bastante perturbado depois do que nos relata como experiência. Mas suas respostas foram bastante instigantes. Não, não conseguimos comprovar nada, bem como não percebemos nenhuma movimentação estranha ou localizamos nenhuma “concentração” nos locais das coordenadas. É uma questão complicada, ainda não podemos dar um parecer sobre a validade das respostas. Medo? Não, não acho que essa seja a melhor expressão. Talvez uma curiosidade, uma excitação tenha se colocado sobre os agentes. Estão trabalhando da melhor forma que podem. Não, ainda não temos nada formulado. Sinceramente, não me sinto abalado. Mas uma coisa me preocupa, Alaor. A perturbação do senhor Marroco é significantemente... real, se é que entende o que eu digo.



17 de julho de 2012

Pai morto


"Em outra percepção, o tempo não é, nunca foi. Por um fio a outro, todos estamos sempre aqui, agora."



Fantástico ambiente colorido, plumas rosas e capim dourado. Ele era nosso super-herói. O carro multi veloz que risca a paisagem e nos empurra para frente, nós nos vemos no tubo de luz, no canhão de eletromagnetismo, na chapa verde do hospital. Perfeitos seres humanos.

Lágrimas geladas e face ainda gordurosa, palidez que se espalha pelo corpo jeitoso. Era jeitoso com as mulheres que passaram na sua vida, era culto para ensinar-nos o que fazer diante daquelas imensas prateleiras do supermercado. Fantástico ambiente colorido, embalagens azuis e rótulos plastificados. Carrinhos que torcem a roda e mudam nossa direção.

Pisantes colados no asfalto, ritmo de cortejo, ruas ocupadas, flores brancas e arranjos coloridos. São todos seres humanos. Também formigas e as baratas saíram dos bueiros e cortam nosso caminho, e, ali, a igreja, de porta fechada para nós. E ele deu sua face para que examinassem, e a viraram para o chão. Segredos, vergonha e copos de aspirina com conhaque. Cabelo desgrenhado às seis da manhã, o anel da mão esquerda que caiu ralo abaixo e nunca mais foi encontrado. Ele, de fato, não queria encontrá-lo jamais. Era nosso super-herói.

Sofá que nos traga como a um cigarro e, depois, expele-nos. Agora, somos como fumaça. Espalhamo-nos contra o vidro, nos dissolvemos no chão. Nas paredes, seus antigos quadros de Pink Floyd brancos, pretos e com raios arcoirizados transpassantes. O homem com fogo na cabeça. Formatos divergentes como nós, cada um espalhado por um canto, por uma vida. A vida gerada de um só. E agora, quando a dele se foi, estamos nós reunidos de novo. Com lágrimas nas mãos e glotes fechadas, paletós pretos e sapatos feios. Como seres humanos que somos.

E agora, para onde vamos?



13 de julho de 2012

Do outro lado do horizonte, depois daqueles morros verdes


É noite e estou em meu quarto, sozinho. É noite, e o medo me distrai. É noite sozinha em meu quarto, é noite neste meu quarto sozinho. É noite.


Era noite naquela época, naqueles dias frios, quando eu apertava a mão contra o parapeito da janela azul. Era noite naqueles dias de inverno, quando tudo era incerto. Vivíamos em uma era de desertificação sentimental. Era eu mais Eu do que agora? O que fez? Para onde foram levados os sonhos juvenis?


Parte I

“Eu sei que estou andando aqui mais de uma vez. Parece que o sol já se pôs assim, não parece, Alfredo? Eu lembro de ter calcado essa pedra no peito do pé, era assim, exatamente assim... Não faz muito sentido...”

O que sabemos do tempo, ou do universo, ou o que sabemos de Deus, ou de deus, acho que é muito pouco ainda – ele falava, sozinho, enquanto percorria o dedo na superfície verde das folhas. Alfredo estava muito mais distante – de si e dele – durante essas indagações, e nenhuma resposta seria ouvida. Sua atenção foi desviada para umas borbulhas formadas na superfície estagnada daquela poça de água barrenta no meio do caminho. Tão simples quanto uma bolha, tão indefinido quanto o que chegava aos seus olhos quando a noite caía. Aquele tanto de pontos luminosos.


Parte II

De certa forma, o que era ontem permanece hoje. As dúvidas, no fundo, são as mesmas, embora se apresentem em nova roupagem. Ele permanece no mesmo ponto, observando as matas que se delineiam no horizonte longínquo. Os anos passaram mas as respostas não vieram. Virão um dia?

De onde estão seus pés agora, várias linhas saem e se esticam em rumos diferentes. Alguns são retos, outros tortuosos. Mas todos vão para lugares não abarcados pela visão. O fim de alguns é imprevisível porque há uma curva no caminho, o de outros porque se embrenham em construções diferenciadas. O fato é que ele sabe que vai ter de escolher algum dos caminhos. Contudo, quanto mais se anda, mais distante um se torna do outro. E se, depois da curva, depois da porta, depois da mata embrenhada, não se chegar aonde era esperado?


Parte III

[resultado desconhecido: o horizonte, por mais que se tente alcançá-lo, sempre estará a mais um passo.]