9 de novembro de 2011

Era outra a situação agora

De repente, tudo cessou. Depois de todo o ruído, passado o torpor místico, os flashes que cegavam a visão sempre até então tão boa, depois daquela sensação (inverídica, então?) dos finíssimos ganchos rasgando a pele dos pés a cabeça, depois de tudo isso e com certeza coisas mais que não me lembro - dada a fluidez do momento - houve um estabelecimento de paz.

Tinha estado sonhando? Não me recobrei, de imediato, das últimas sequências temporais existentes na memória. Olhei em volta. Estava em uma sala familiar. A mesa de madeira escura, a cadeira de balanço, a cristaleira repleta de louça – raramente utilizada, o micro-ondas preto que destoava do cenário primário. Eu estava na casa de minha avó.

Entorpecido, sentei-me. A ordenação estabelecida de paz se mantinha, embora abrisse espaço para que uma confusão se instalasse: a regressão das cenas – absolutamente falha – me deixa no torpor da preocupação quando percebo que não me recobro do seguimento dado até aqui. Estive sonhando essas imagens tão reais agora há pouco?

Sentei-me. A cadeira suavemente embalou-se, sem que eu precisasse empregar um esforço físico exato para tal. Com a mão no bolso esquerdo, retirei de lá um maço de Marlboro comprado e ainda não aberto. Aparentemente eu o tinha comprado ainda em Rio Branco, mas dada a falta de nexo entre toda a memória imagética que se apresentava então, aquietei-me. Levado pelo movimento lento da cadeira, acendi o cigarro e o pus na boca.

Como que junto à fumaça, eu me elevava de maneira a estar, de certo modo, também dissolvido no ar, bastando querer para espalhar-me por toda a casa e, no instante que quisesse, ajuntar-me novamente em outro lugar. Deixei os pensamentos – loucuras, loucuras – prosseguirem, mas tentava me ater apenas ao ritmo das tragadas ao cigarro. Um formigamento na ponta dos dedos, da língua, da face, acometia-me desde quando dei-me por estar na sala. Flutuante estava eu.

Mais por hábito que real vontade, abri a garrafa branca em busca de café, mas estava vazia. Olhei, tomei-a nas mãos, fitei, refleti. Estava alva, alva e vazia. Exatamente como eu me sentia. Como se tivessem sido tirado de mim todo o peso sobressalente das injúrias da vida, das lembranças rancorosas, dos casos de amor mal vividos. Por um momento aquela pequena garrafa, um objeto, um objeto sintético e artificial, comungava do mesmo estado espiritual que eu.

Levando por um impulso, tão repentinamente como que o acordar recente, caminhei pela casa, abri uma porta, duas, três – não estava mais no mesmo ambiente – e cheguei a uma outro recinto. Ali a atmosfera era pesada, as janelas velhas de modelo barato eram cobertas por cortinas escuras e puídas. Pairava um odor malogrado, mas discreto. Talvez não o tivesse sentido senão por uma sensibilidade aguçadíssima – com a qual vi-me capacitado de ora pra agora –, que tangia ao espiritual.

Ali um amontoado de faces conhecidas jaziam algo que eu ainda não podia compreender. As feições tristonhas me deixavam apreensivo, embora, por esforço maior que fizesse, não conseguisse as fazer sairem do transe em que estavam e ouvirem uma palavra minha que fosse. Algo de errado acontecia. Eu sentia, sentia nitidamente. Despi-me da paz celestial e uma angústia pesada pegou-me pelos pés. Eu agora andava arrastado, e dificilmente me movia naquele bolo de gente. Meus olhos se voltaram para o que até então eu ignorava – estava no velório. Os céus se abriram e jogaram sobre mim, como a mão pesada do pai que vem para arrumar-lhe os juízos, a claridade da consciência.

Junto ao caixão sentava mamãe. Ela tinha o terço na mão e usava a blusa azul marinho de botões rosáceos, roupa costumeira de casa. Mamãe, que há tantos meses eu não via, e que – ainda não sabia o porquê – não atendia mais as minhas ligações. Em desespero eu a abracei, mas era como se não estivesse ali. Aos berros, com a boca espumante, agarrei-a pela camiseta, tentei ver seu rosto. Nada. Eu já sabia, embora negasse a todo instante – oh, Deus – que ela já não mais me via. Estávamos em prantos.

Meu tempo acabava. Vindos de fora daquele ambiente, os embaixadores me puxaram pela mão e secaram minha face imaterial. A situação era outra agora, falavam-me, e, sem ter onde ou em quem me apoiar, deixei-me ir com eles.

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