18 de abril de 2011

Então, deixe-me ir...

“No púlpito onde me encontrava ocupei o melhor lugar a que tinha direito. Abri as janelas, escancarei as cortinas, deixei a luz penetrar. Eis que vi...”


I

De uma perspectiva nova, vi minha vida. Flutuei sobre seus aspectos mais reprimidos. Caminhei palmo a palmo toda minha história. De um lado para o outro, examinei todos os detalhes, ouvi cada palavra, relembrei os rostos dos semelhantes. Em um exame de paciência, trouxe à tona cada copo de água recebido, os mililitros de fumaça tragada, as xícaras de café dedicadas a um ou a outro. Fiquei feliz.

De toda nossa história, do primeiro beijo ao primeiro movimento brusco, da primeira crise nervosa ao segundo beijo, tudo levamos. De tudo lembramos, ainda que a vontade exercida pela vaidade seja a de negar. Não lembramos nada, não sentimos nada. Mentira. Somos todos humanos, somos todos amantes. Eu de você, você de mim.

Por todas as crises de ciúme pelas quais passei, por todas as portas fechadas que você me deu. Por aquele beijo fora de hora, pelos gritos ao volante. Pelas intermináveis noites de satisfação físico-emocional. Pelo primeiro presente recebido, pelas visitas surpresas. Pelas declarações de ano-novo. Pelo primeiro aperto de mão sincero. Fomos felizes.

Agora tenho de deixá-lo ir.


II

O mais difícil foi dar o primeiro passo, a primeira virada de costas. Depois, a nuvem tinha tomado uma dimensão menor...

Eu senti cada escorrer de lágrima, cada torpor insano que me percorrera os vários caminhos possíveis entre o indescritível emaranhado nervoso que aparelha o ser humano.

Saí. Sentei-me na beira da calçada, vi os ciclistas passarem. Ainda havia uns cigarros amassados no bolso, uma caixa meio usada de fósforos. Acabaram-se ali. Acabaram-se como também acabaram as faíscas de longos anos de companheirismo a que nos dedicamos. Foram se consumindo, transformando-se em cinzas e em brasa quente, nociva, como as pontas dos alvos cigarros.

Quem de nós foi culpado? Houve um salvador em nossa peleja? Foi você quem não quis me escutar, fui eu quem atropelou o sentimento com excessivas formalidades? Quem foi o culpado por não comprar o sorvete?

Somos todos humanos, somos todos amantes. E talvez, pela primeira vez, eu possa enxergar a grande lição a que nos obrigamos. Por um instante, fomos perfeitos um para o outro. Por um momento, atingimos a completude. Seus braços foram meu porto seguro, minha presença, seu maior conforto. Como todas as estações que permanentemente cerceiam esta vida, essa hora acabou. Fomos jogados violentamente no vazio escuro, não entendíamos bem o que estava acontecendo. Pela primeira vez, nenhum de nós segurava o controle.

Agora tenho de deixá-lo ir. Por mais de uma vez, por mais de um registro em minha memória, fomos felizes.

Deus nos abençoe.


Um comentário:

Mairex disse...
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