29 de setembro de 2013

Mão ao ar

Inevitável acender um cigarro, e danem-se as disposições contrárias.


Não me importa se você não me olhar. Ainda assim continuarei passando. Deslizarei meus dedos por sua pele, espalharei pérolas pelo chão e beijar-te-ei os pés, numa adoração desmedida.

Quando recebi aquele bilhete, o guardei; sabia que poderia ser o último de uma vida inteira. Poderia ser o último trocar de olhares com outra pessoa humana, com outro animal que materializasse sentimentos em um beijo. Não, não são todos os que sabem beijar. Nem todos transcendem pelas vísceras as emoções e falam até mesmo por um aperto de mãos. Ah, sou um espírito tão solitário.

Quando olhei pela última vez, vi um homem parado à porta do shopping daquela avenida. Eram dez da noite, e era domingo. Carregava um embrulho numa das mãos, ração para gato, e a outra a tinha solta no ar. Inconscientemente, quem sabe, não procurava uma outra mão à qual pudesse entrelaçar os dedos? O quão inocente podia ser, o quão solitário não o era? Fez-me pensar, parar, hesitar.

Quem acompanharia o estranho para casa, senão sua sombra, fraca pelas luzes débeis dos postes? Quem o esperaria em casa, além do bichano? Da próxima vez que tiver vontade de gritar, gritarei. Quando me acometer vontade de agarrar-te, dar-te-ei uma rasteira e seu corpo premirei com toda a força de uma alma desesperada pela vida.

Acendo outro cigarro, e danem-se as disposições contrárias, porque se eu não for viver para meu prazer, que me adianta seguir a cartilha de bons modos?

Ah, eu tenho saudade de tanta gente, oh, Pai! E tenho saudade da gente que nem conheci ainda, como é possível? Expilo pelo universo energias de amor, explosões que acometem meu espírito noturno. Talvez um dia haja resposta, e me batam na porta, encontrem-me no supermercado. Quantas surpresas o jogo da existência não reserva entre um minuto e outro, entre uma prateleira e outra?


E, enquanto entrava a madrugada, o homem, sentado em sua poltrona acolchoada, envolto de carpetes e móveis de madeira escura e maciça, tinha em seu colo um felino de olhos verdes, quase bioluminescentes. Uma das mãos, apenas uma, apoiada sobre o colo. E assim adormeceu.

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