23 de janeiro de 2019

Felipe


[N.A.] Quando acendo uma luz, são milhares de pontos que brilham sobre, sob e ao meu redor. Sou um estranho nessa multidão, és um estranho nessa multidão.




Dando uma volta pelo quarteirão, sacolas nos braços, calças rasgadas, é um dia normal. Somos formigas desordenadas nessa imensidão, dando de ombros para outras. Há similares e certamente há iguais, mas estão desconhecidos de ti. Há os que buscam o que você busca, há os que podem somar contigo uma vida inteira, há os que lhe ligariam no outro dia. Mas estão desconhecidos de ti.

Quando em sua melancolia acende o beque, sobe a fumaça que completa o apartamento de pisos gastos. O gato que tudo vê, na janela, dimensiona e redimensiona a incompletude que o espaço vago e habitado, habitado por milhões de faces incógnitas, representa pra ti, e pra ele. Do ponto de vista de um felino, há tantas dimensões para se importar que todo esse romance, carregado de drama fecundo, não passa de distração. Mas você não é o seu gato.

A rotina que te consome é, do outro lado da moeda, a atração para aqueles que não possuem rotina. Para aqueles que desejam nadar no mar de braços soltos e diversos, que almejam estar ali, no centro do olho, mesmo sem poderem ver. A rotina te consome e, como brasa, você se desmancha por entre os dias, e já não sabe precisar mais o que diferenciou o ontem de semana passada e o que haverá de novo no próximo mês. Consumido e adequado, profundamente entorpecido, você é habitante de um coração tão grande, tão grande, que se deforma em massa dura e asfáltica tão necessária quanto inebriante. E, em alguns dias, o movimento de ir e vir é feito sem esforço, pelos pulsares da megalópole.

A história de uma paixão, uma paixão de vida, não é contada. Escondida, deixa ser percebida apenas por entre frestas, mas nem mesmo assim é fácil. É preciso uma faca na fenda, senão um pé-de-cabra, para que um pouco de luz entre e permita ver o que há por dentro. Mas o movimento é desconfortável, rechaçado pelo seu próprio dono. Por que há vergonha de seu trajeto? Será porque ele não leva ao destino desejado? Será porque, na experimentação, perdeu-se o prumo acerca do que é o desejado de fato? Será pelo dinheiro, será pela falta de uma prática condecorada pela sociedade vil? O que se desfaz no não contar, o que se perde nas lembranças acatacumbadas que se vão sendo sovadas com a indiferença alimentada pelo cotidiano?

É noite de Ano Novo, há fogos na grande avenida, e foguetório barato nos quintais vizinhos. Enquanto metade, ou talvez mais, aplaude o que chega, simplesmente por chegar, sem que haja muito ao que se agarrar realmente, a outra trabalha para manter bombeando o coração que jamais dorme. Mas você não faz parte de um grupo, nem de outro. Enfurnado em lençóis, dorme na tentativa de compreender o que tudo isso significa – chegar a mais um ano vendo a vida, gotejando, passar sem um feito histórico. Histórico para si. Sobre ti pairam fantasmas de várias faces. Paira o corpo indefinível do tempo, que é um carrasco puxando correntes atadas a todos, invariável ao sofrimento e à miséria dos poucos que percebem seu movimento. Como acordou dessa noite, como enfrentou o primeiro dia de um novo ano que não lhe trouxe novidade? Como saberei?

Os cabelos amarrados, equilibrando uma face pesarosa e séria, dando beleza a um conjunto singular, passeiam pelos trens metropolitanos para mais um dia de mais um mês de mais um ano. Há uma beleza que inflama poeticamente essa trajetória sem romance, esse desespero contido pelas amarras da rotina trançada, e da qual se busca escapar. Há milhares de faces diferentes, com mentes similares, há milhões de faces diferentes, com corações iguais, mas estão desconhecidas de ti. E as artérias que perpassam esse coração imenso são largas demais para que se percebam. No mar de braços há tantos nadantes que se tornam um só, uniformizado, atomizado, incapaz de ver a própria face. São milhões de faces que passeiam todos os dias sem turismo, atrás de suas próprias histórias a construir, mesmo sem saber que assim já as são, feitas dia após dia. Similares ou até iguais, desconhecidos e sem possibilidade de virem à tona. A solidão espreita mesmo sob a luz forte de um meio dia, e afronta até o destemido durante o estrondoso breu da madrugada.

Há os que buscam o que você busca, há os que podem somar contigo uma vida inteira, há os que lhe ligariam no outro dia, há os que buscam você, sem saber. Mas estão desconectados de ti.






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