23 de julho de 2021

Vampiro


[N.A.: Em algum momento da existência, na vida ou além dela, vampiros somos todos]



O equilíbrio entre não sentir muito e permanecer sentindo é um ritual de todos os dias. A delicadeza de absorver e receber os sorrisos percebidos em volta, de se envolver na multidão de pouca ou muita gente sem se deixar de lembrar que no fim da noite é mais um dia sem retorno, com a cabeça afundada em travesseiros e o tato vazio.

O equilíbrio entre sentir muito e não afogar tudo em volta é uma reza de joelhos nos chãos. Todos os dias. A sensibilidade de se levantar depois do tombo, rindo entoando a graça sem graça de um pequeno vexame, enquanto por dentro os ossos trincados por outros tombos rangem seus próprios dentes.


É na tentativa que reside o cotidiano. De pegar sua mão e olhar com uma distância segura, evitando que os olhos traguem e sorvam de uma vez a alma que alcançam quando as pupilas estão alinhadas. Se inevitável, melhor que seja pouco a pouco.


A quebra do equilíbrio provoca rachadura da unha do dedão ao maxilar, e nessa quebra tudo vai ao chão, mesmo que o espectro continue fazendo sua performance, holograma inteiro e intacto de mãos abertas e dispostas. O martírio de se mutilar pelo fio perdido da meada muitas vezes vai chicotear mais fundo que os estragos que poderia fazer o solto fio, debatendo-se em faíscas e sem controle.

No fim da noite é apenas mais um dia sem retorno. O tato vazio é real e sobrepõe-se a quaisquer estímulos nervosos que podem ou não haver. A mente brilhante permanece acesa a quase todo o tempo, irradiando uma luz nauseante. Os olhos abertos mesmo quando nada se pode enxergar, fitando e remoendo, planejando e riscando, esperando que se cumpra o de sempre, mesmo sem ninguém a pedi-lo.


É em quando falha a tentativa que reside minha miséria. De buscar seu rosto no cotidiano e não mais compreender como era. Fagocitado pela euforia que não pude conter. De ver se esvair, como areia na ampulheta sem fundo, os sorrisos que absorvi e incorporei sem poder impedir. E agora sem expressão o seu corpo, mesmo que ainda ao alcance do meu enlace, no ato que encerra minha própria tragédia.


O equilíbrio é uma utopia de todos os dias.





























(Fonte da imagem: Pixabay)

Um comentário:

Mairex disse...

Maravilhoso. Esse texto é 100% meu. Equilíbrio é o ideal de todos os dias. E ele não se faz sem expectativas. Menos ainda sem frustrações. Sempre o mesmo ciclo, com maquiagem diferente. Ai.